sábado, 19 de maio de 2012

Prólogo

Menos de seis horas da manhã. Dali, detrás dos arbustos à margem da cabeceira da ponte, ela observava a uns trinta metros de distância, os movimentos dos seis jovens que ela conhecia muito bem. Inquieta, coração aos pulos procurava manter-se imóvel, para não ser vista, nem lembrada. Eram movimentos impacientes, próprios de quem espera.

A espessa neblina facilitava seu esconderijo. Dificultava sua visão. Mal identificava cada um deles. Deixara a Lambreta-61 perto de onde estava, atrás de uma choupana de beira d’água, dessas de vida curta, erguida por andarilhos. Dali, mesmo sem distingui-los perfeitamente, era mais fácil observar do que ser vista por alguém, ou por qualquer um deles.

O barulho do automóvel se aproximando desviou sua atenção por um momento. Viu quando o rapagão alto e forte desceu do táxi e se dirigiu para a parte mais elevada da ponte. O coração dela batia no ritmo das ágeis e decididas passadas do jovem que ia ao encontro da turma, lá em cima.

Ele invadiu a cerração. Transformou-se num vulto que logo se juntou às imagens dos outros que o esperavam e que, agora, pareciam ensaiar uma espécie de ritual guerreiro, uma dança de chuva, ou coisa parecida. Notou que o recém-chegado foi envolvido pelo bando. Em seguida, duas figuras se afastaram do círculo. As silhuetas difusas tinham quase a mesma altura. A mesma compleição física. Trocaram o que ressoava como uma áspera conversa. Dali, ela não conseguia escutar bem o que falavam. Via muito mal o que acontecia.

De repente, um deles desferiu um violento soco no rosto do outro. Isso, ela viu. O agredido gritou e caiu. Aquele grito ela escutou. Tinha ódio dentro dele. Acompanhou a tentativa de uma nova agressão. A meio caminho do gesto brusco, um tiro!

Ela ouviu o grunhido de dor lancinante. Aquele estertor, como uma bala, trespassou seu coração. O som da tragédia foi além de suas entranhas, atingiu o seu sexto sentido:

- Ai, meu Deus!

Amaldiçoou seu terrível pressentimento e, já sem poder conter o choro, correu para a sua lambreta e arrancou em desabalada carreira, tomando o rumo da cidade. Deixou para trás um morto e um assassino; sem saber quem era quem.

A neblina se desfazia para dar lugar a um radiante domingo com ares de verão dos anos-60 já no rumo dos 70.

Lá no alto, no meio da ponte, um corpo pendia solitário, debruçado sobre a mureta de ferro frio e úmido. Mais nada, nem ninguém. Apenas o sol por testemunha.



 O CRIME NA PONTE


Capítulo 1

FLASH



Primeiro foi aquele ruído, como um guizo de cascavel, disparando a potente máquina fotográfica; logo depois, o flash agressivo como um raio.

Mais que um enorme susto, a velocidade da luz intensa provocou uma raiva cega cortando o barato de Grazziella que, com a boca cheia do que achava de melhor em Vinícius, engoliu o grito de pavor pela estúpida e repentina invasão de sua privacidade.

Nua, inteiramente nua, olhou Vinícius, seu namoradinho da vez, saltar de seus lábios, semuma peça de roupa sequer. Naquele impulso, armado apenas com a dura coragem dos seus atributos ele gastou apenas um urro da cama até à sacada da suíte, no segundo pavimento da luxuosa mansão da rica família Berttucci.

O brusco movimento do rapaz serviu apenas para a frustrada constatação de que já não havia nada, nem ninguém mais por ali. O intruso, decerto um arremedo desses paparazzi de aldeia, sumira da varanda num pulo de gato para os jardins do casarão apinhado de jovens que só queriam saber da festa de arromba que rolava sem quê, nem pra quê.

O heróico amante latino fechou a cortina e andou lentamente na direção da sua sobressaltada Grazziella. Deixou-se flagrar pela namorada em toda languidez da sua excitação perdida.

Pegou o cigarrinho do depois, num maço de Colúmbia sobre o bidê - uma digna versão barroca de mesa-de-cabeceira e repartiu com a garota duas ou três boas tragadas. Já não havia mais nada a fazer por ali. Só mais aquele penúltimo gole do uisquinho de antes.

Vestiram-se em silêncio. Ela, dando um tempo para se acalmar, refez a maquiagem; já com os nervos no lugar. Ele apagou a luz do abajur de porcelana Ming. Seu braço direito acomodou-se na cintura macia de Grazzi.

E assim abraçados e com ar de negligente serenidade, desceram para a pérgula da piscina. Ali o garden party corria solto ao som de Glenn Miller, Benny Goodman, Sinatra, Elvis, Bill Halley e até um pouco de Orquestra Tabajara e muito Pepino Di Capri e Domenico Modugno. Tudo em vinil, Long Play é que não faltava.


Capítulo 2

EM TERRA ESTRANHA



Fernando e Helena Berttucci - os donos da faustosa residência - estavam, naquela noite antiga de sexta-feira, a mais de metade da andança de outra de suas habituais e sistemáticas temporadas de vinte dias pela Europa.

Todo ano, no fim da primavera brasileira eles davam uma esticada pelo outono do Velho Mundo. Tinham tempo inteiro, meia-idade e recursos de sobra para isso. Mas não gastavam mais do que três semanas no tradicional passeio.

Deixavam os filhos – Luciano, o Nano; Túlio, o Tutti; e Grazziella, a Grazzi - como donos da casa e da indústria, uma enorme e sólida gráfica e editora, a Livraria Novo Mundo.

As temporadas, em sua grande parte, eram passadas na Itália, berço longínquo onde haviam nascido há pouco mais de meio século.

Ele era de uma famiglia do nordeste italiano: Trieste, lugar incomparável para se contemplar o mar Adriático e de se provar as comidas que guardam até hoje os sabores e a influência do império austro-húngaro que fazia da encantadora e misteriosa Trieste, o seu porto principal.

Helena descendia de tradicionais moradores de Bari, na região de Puglia. Foi lá que casou com Fernando, na Basílica de San Nicola.

Helena herdou daquela cidade já livre dos bárbaros e dos godos, os modos dos que vinham de Bizâncio com costumes sarracenos, até que Bari passou para os normandos. Helena era agora uma linda balzaquiana bizantina.

As férias do abastado casal eram uma cíclica e obrigatória volta rica aos tempos de sua pobre e difícil juventude invadida, em 1939, pela Segunda Grande Guerra, razão bastante para que juntassem então o pouco do quase nada que tinham e se aventurassem a descobrir o Brasil.

Com duas malas e a roupa do corpo, entraram na exótica terra estranha pelo porto da cidade Onda do Mar. Queriam instalar-se um pouco mais para o centro do Brasil.

Seu destino inicial era São Paulo, ponto de muitas oportunidades que lhes fora recomendado, mas acabaram se radicando em Realeza do Sul, acolhidos por Dom Genaro, um velho amigo dos Berttucci.

Fernando, por insistência desse italiano já estabelecido na nova pátria, foi trabalhar “por uns tempos” na sua pequena livraria, de nome grandioso: O Mundo. De balconista, virou auxiliar de escritório e logo chegou ao cargo de guarda-livros. O que seria um período de experiência se fez definitivo.

Helena virou dona-de-casa. Como os rendimentos eram escassos, costurava para fora. Por suas prendas, logo de costureira passou a estilista.

Realeza do Sul era uma das cidades mais elegantes daquelas paragens do Brasil. Helena era uma mulher de extremo bom gosto.


Capítulo 3

O HERDEIRO


A livraria, pela dedicação e tirocínio de Fernando, cresceu em três anos o que jamais cresceria em trinta. O proprietário, Dom Genaro Moglianno, oriundo de Messina, província da Sicília, era um vetusto e solitário viúvo. Não tinha parentes.

Encantado pelo talento, pela iniciativa e pela capacidade de produção do seu protegido, gradativamente confiou-lhe os destinos da empresa.

Um dia, ofereceu-lhe mais: a gerência-geral e uma quota de sócio equivalente a 20% da firma. Assim, fez de Fernando seu herdeiro universal.

Era o mínimo que podia fazer por aquele menino, filho de seus melhores amigos dos velhoS tempos de criança naquela Trieste, sobrevivente da Primeira Grande Guerra que prendeu a Itália nas mãos de Benito Mussolini, um jornalista marxista que, pregando o socialismo revolucionário, assombrou a Itália pelo seu caráter violento e empedernido.

Dom Genaro atravessou a juventude lado a lado com os pais do moço que agora dava novos ares à sua empresa. Pegou enorme afeição pelo jovem casal que – como ele próprio há muitos anos – ancorava no Brasil em busca de uma nova história de vida, cheio de esperança e determinação.

Fernando e Helena eram, para Dom Genaro, a repetição de sua saga. Chegavam à nova terra deixando para trás sua gente, suas coisas, sua vida, suas raízes, assim como dom Genaro deixara, lá pelos secos e melindrosos Anos-20, as perturbações e o caos que o fascismo provocara na sua bela Itália.

O que restou da Segunda Guerra para o país daqueles dois meninos que agora abrigava em Realeza do Sul, não era melhor do que o terror gerado pelas milícias camicia nera do destemperado ditador que, aliado a Adolf Hitler, mergulhou o mundo no mais terrível e odioso conflito dos chamados tempos modernos. Uma carnificina, ainda corpo a corpo, ainda baioneta a baioneta, que acabou embaixo de dois cogumelos atômicos.

No Brasil, Dom Genaro se deu muito bem. E agora repassava seu aprendizado para Fernando:

- Aqui, quem trabalha, vence. Chega aonde quer - ensinava do alto de sua própria experiência.

Dom Genaro, mais do que carinho por Fernando nutria respeito e admiração pelo seu serviço, pela forma firme e constante como lidava com cada detalhe da livraria.

Com um sentimento paternal de absoluta confiança, depositou sua alma e os destinos de seu sólido negócio nas mãos do bom rapaz.

Gradativa e paulatinamente a identidade da Livraria O Mundo, perdia os traços de Dom Genaro e se encaminhava para ser reconhecida,  logo adiante, como a Livraria Novo Mundo, com a cara de Fernando.



Capítulo 4

GRATIDÃO


Dizem as boas línguas, no pior de seu veneno, que a morte de Dom Genaro foi friamente apressada quando, dois anos depois de se tornar co-proprietário, Fernando lhe apresentou o balanço anual da livraria. Ela estava quebrada: o rombo era de milhares e milhares de cruzeiros.

Ao saber, assim tão de repente, da sua falência, o pobre homem teve um ataque fulminante do coração. Naquele tempo morria-se de vergonha e desencanto. Fernando herdou a massa falida.

O testamento, no entanto, não dizia nada daquilo que fulminara Dom Genaro. Nem parecido. Nem de perto, nem de longe. Os números eram bem diferentes dos que estavam naquela espécie de Caixa-2 e que provocaram a morte súbita do idoso e combalido imigrante. A empresa estava em franco crescimento, em sólida evolução.

Isso, porém, foi coisa que ninguém mais ficou sabendo. E, antes que a antiga musa cantasse, urgia que Fernando retomasse o ritmo de trabalho que os negócios exigiam. A livraria, como num passe de mágica, logo evoluiu para a estatura de uma empresa gráfica-editora.

Aos murmúrios que alimentavam as desconfianças da sociedade - corriqueiras em cidades do porte altivo de Realeza do Sul - o herdeiro fazia ouvidos moucos e se acobertava na pele dos que agüentam com galhardia a infâmia daqueles que não suportam a fortuna de quem nasceu para vencer.

Sabia-se tão impune quanto se sentia imune aos bafejos da inveja que era sufocada não apenas contra a sua sorte, mas que não vingavam por tradição e pelo espírito cordato daquela sociedade de alma hospitaleira e acolhedora para com as ditas forças-vivas da comunidade.

Em Realeza, o presidente da Associação Comercial - uma promissora organização que surgia para defender os interesses corporativos dos talentos empreendedores citadinos - era o comendador Michello Kazzallette, uma figura que se espraiava em ondas de prestígio e respeito.

Ninguém era tão católico assim que recriminasse sua pecaminosa influência nas pontes fronteiriças do Uruguai, paróquia amiga de onde procediam as atrações de sua conceituada e bem sortida grande loja de novidades – O Bazar da Cidade. Ninguém tugia nem mugia. Vacas de presépio, diante de um honorável muambeiro.

De outra parte, na cidade, ninguém era capaz também de cometer o sacrilégio de condenar a ousadia das vendas-casadas do maior e do mais sólido armazém atacadista da laica diocese, propriedade de Joaquim O. Silveira de Soares, probo provedor da Sociedade Benemerente Luso-Realense e detentor do monopólio da comercialização orizícola ali, naquele convidativo Cone Sul do mundo.

Pois, não por acaso, em pleno pós-guerra, só se poderia comprar de seus estoques um quilo de arroz se levasse de contrapeso um saco de bolinhas de gude olho-de-boi. Era a liturgia do desmedido tino comercial.

Seu Joaquim, no entanto, era magnânimo com a colônia d'além mar em questões de saúde e internação hospitalar.

A confraria lusitana morria de amores e de respeito por ele. Salvava pessoas e matava comentários desairosos.

Era o grande chefe de um primeiro esboço do que um dia viria a ser chamada, pelos cantos da boca, de Máfia Portuguesa que, disputava cada esquina de padaria com os imigrantes espanhóis, bons no mercado de panificação.

Pois verdade é que, dos navios de Espanha também chegavam ao cais da vizinha cidade Onda do Mar, imigrantes aos montes fugidos a tempo dos estragos que a ocupação nazista causava à parte meridional da Península Ibérica. Do porto ali à beira atlântica, na esquina dos Pampas para chegar a Realeza do Sul era apenas um pulo.

Um pulo que mirava centros maiores da nova pátria, mas que acabava de pés fincados àquele chão, já que as rodovias não conheciam ainda o poder expansionista de Mário Andreazza que, décadas depois, rasgou o mapa do Brasil com estradas de fora a fora, por dentro, pelas orlas e por todos os cantos.

A fixação dos espanhóis em Realeza do Sul se dava em cada uma das esquinas mais vistas da acolhedora terra.

Montavam padarias que se multiplicavam em outras tantas, já que dominavam a arte de transformar aquela farinha escura que sobrava da guerra em massas deliciosas, broas de milho de sabor incomparável, bolachões de campanha e pães e biscoitos que chegavam às mesas de seus afáveis anfitriões.

Ai de quem erguesse a voz para criticar a evolução dos egressos dos caminhos de Santiago, da Andaluzia, de Rioja, ou de Madri. Eram senhores de paz e engenho. De progresso e produção. Honoráveis amos e senhores ou simples e bons aventureiros.

Pois, nesse contexto, Don José F. Cristóbal estava, para a sempre crescente comunidade espanhola, assim como o Seu Joaquim estava, para a numerosa legião lusitana. Procedente da Catalunha, o bom José pegava touro à unha. Só quando preciso; quando não obedeciam à cartilha catalã; apenas quando lhe pisassem nos calos.

Isso da máfia lusitana cutucar a espanhola nunca ficou muito bem resolvido. Dizia-se, a bem da verdade que era coisa da imaginação fértil de quem não sabe, nem tem o que fazer.

Tudo, na realidade, girava em torno de moldar uma nova história de vida. De dar jeito e forma a um necessário e urgente recomeçar de suas famílias, de seu admirável mundo novo.

Foi nesse contexto que Seu Joaquim fez escola. Emprestava dinheiro a quem precisava e não cobrava juros. Sua moeda de troca era, mais cedo ou mais tarde, em prestação de serviço.

Sempre havia alguém lhe devendo de tudo um pouco, menos o dinheiro que – como ele fazia questão de mentir – “não valia um tostão”.



Capítulo 5

BOM PORTUGUÊS



Um bom português - desses que vêm descobrindo o Brasil desde Cabral - perdeu o rumo lá pela Ilha da Madeira e, um dia, por sugestão de terceiros bem informados, apareceu em Realeza, com uma mão na frente e outra atrás.

Trazia um bilhete de recomendação para apresentar a Seu Joaquim. Naquele dia de inverno, Patrício Manuel com pouco mais de 20 anos de idade chegou pé-rapado, em mangas de camisa, diante do grande benfeitor.

Não sabia nem como começar. Ia gaguejar qualquer coisa, além da leve e acanhada saudação, quando o espadaúdo e grisalho conterrâneo o aliviou:

- Bom dia, meu bom patrício. Olhe, vista isso aqui – disse ao alcançar para o rapazote, com um gesto de nobre atenção, uma blusa de lã que estava no cabide ao lado de sua enorme escrivaninha.

O jovem atarracado, magro para a sua compleição física, surpreso e já sem tanto medo diante daquele senhor enorme de quase dois metros de altura, vestiu o agasalho, sem pestanejar. Manteve a posição respeitosa, passou-lhe o bilhete e aguardou em silêncio, já sem tiritar.

Seu Joaquim leu a recomendação escrita pelo amigo de um padrinho do avô do portador e, com sinais de saudade do torrão natal na voz, foi direto:

 - És da Ilha da Madeira. Vens começar a vida por aqui, pois. O que achassabes fazer, ó pá?
-Tudo, senhor. Sou padeiro, doceiro, cozinheiro; sei comprar e vender. Tenho muita vontade de trabalhar... Sei que posso fazer tudo isso e até muito mais que isso tudo.
- E quanto queres tu ganhar?
- Ah, o senhor me desculpe... Não me leve a mal, não quero ser grosso, mas nem o senhor nem sua empresa poderiam me pagar o quanto quero ganhar...
- Olha como é que falas, ó puto! – embraveceu-se o empresário.
- Senhor, não me entenda mal, eu quero trabalho. Não quero emprego.
- E como pensas fazer isto? E tens tu lá dinheiro pra começar?
- Não, senhor. Mas também não quero o seu dinheiro. Quero ficar lhe devendo mais do que isso, “dinheiro não vale um tostão”.

E foi aí que nasceu a frase que Seu Joaquim adotou para o resto de sua vida como uma espécie de slogan para a sua vaidade pessoal. Gostou de Patrício Manuel. Aquele galeguinho atrevido tinha futuro.

Que não haja espanto pela rapidez com que as coisas aconteciam com Seu Joaquim. Era assim que a coisa funcionava. Fazia parte do esquema. Era aquela coisa de forças-vivas da comunidade. O ágil e eficiente poder invisível. Quanto mais agilidade, melhor. E assim foi:

- Pois então te vou a dizer. Apostarei em ti. Vou financiar-te o primeiro negócio.
- Eu lhe serei eternamente agradecido. Minha padaria... A nossa padaria vai ser a melhor dessas cercanias...
- Não. Não vai ser a melhor padaria. Vai ser o melhor restaurante.
- Mas ó pá...
- Não disseste tu que, além de tudo, sabes comprar e vender? Pois vais ter, quer dizer, vamos ter o melhor restaurante, a melhor casa de pasto da cidade.
- Casa de pasto, restaurante... Só isso?!?
- Não tenhas olho gordo, começará assim, depois será um grande armazém-geral de compras e vendas. Uma distribuidora de alimentos, produtos, mercadorias, se é que me entendes.
- Humm...
- E assim não brigarás com os espanhóis por um ponto de padaria. Eles vão até gostar de ti e vão até comer e comprar na tua casa... Na nossa casa.

Seu Joaquim levantou-se, sinalizando o fim da conversa. Deu as coordenadas para o seu mais novo “sócio” e providenciou tudo, desde albergue provisório, papelada para o novo residente da cidade, até o local para instalação do restaurante e o material necessário para que tudo começasse antes que chegasse a primavera.

As obras iniciaram uma semana depois daquele primeiro encontro. Menos de quarenta dias após, quando setembro chegou, a casa foi inaugurada com todos os salamaleques e rapapés que fazem bem à sociedade e aos bons negócios.

Houve um pré-lançamento do restaurante Casa de Pasto da Ilha, a portas fechadas, para as forças-vivas citadinas: juiz, promotor, prefeito, bispo, delegados, empresários, gente da alta, políticos influentes, os provedores da Sociedade Benemerente Luso-Realense e da Santa Casa Misericordiosa, presidentes de clubes de serviço, figuras da imprensa e do jornalismo de butique. As tais forças-vivas; os formadores de opinião da cidade.

O ambiente, a decoração, o cardápio, as coberturas de mesa, pratarias e o atendimento conquistaram os convivas. Começava a história de sucesso da mais nova grande casa de refeições da sociedade realense.


Capítulo 6

PRATO FRIO


Em pouco mais de dois anos, Patrício Manuel cresceu de forma espantosa. Seu tino comercial era seguido por uma formidável ausência de escrúpulos. Não tinha mãe viva. Seu alvo fixo e permanente era o lucro. Custasse o que custasse. Doesse a quem doesse.

Seu estilo tratoral de negociar atropelava meio mundo. Passava por cima de quem, ou do que estivesse em seu caminho.

Logo estava nadando em dinheiro. E, como "dinheiro não vale um tostão", nunca lhe deu na cabeça repassar tostões para seu sócio-benfeitor.

Num dos jantares do grupo de beneméritos que se realizavam invariavelmente às quartas-feiras na Casa de Pasto da Ilha, Seu Joaquim fez na direção do sócio um sinal, imperceptível para os outros comensais, mas que atingiu Patrício em cheio. Pouco depois estavam os dois a sós no escritório do restaurante. Seu Joaquim foi duro e seco:

- Patrício já é hora de me prestares contas. O negócio vai pra lá de bem...
- Vai sim, Joaquim - disse Patrício já sem qualquer respeito pelo interlocutor - mas, só um trabalha aqui nesta casa. Tu só dás as caras pra comer e beber e fazeres cartaz com os teus amigos, às minhas custas... Não sou teu escravo.

O tom desaforado não surpreendeu Seu Joaquim, nem tampouco o abalou. Pelo andar da carruagem, ele já esperava alguma coisa parecida.

- Ei, moleque, vê bem como tu falas - a petulância do safado o tirou do sério.
- O que esperas fazer? – desafiou-o Patrício Manuel.
- Espero nada. Vamos acabar com nosso trato!
- É o que mais quero - retrucou o desaforado mal-agradecido.
- É o que é preciso... - resfolegou o velho.

O portuga aproveitador, não esperou mais nada. Jogou na cara do mentor de sua vertiginosa história de sucesso na cidade que o adotara, aquilo que já vinha planejando há muito tempo:

- Pois, então te dou Cr$ 500 mil na bucha... E o negócio fica todo pra mim.
- Moleque tu és muito folgado. Mal sabes lá o que estás fazendo, ó gajo.
- É mais do que o dobro do que tu me emprestaste...

O chefão não disse mais nada, levantou-se da cadeira, pegou o portuguesinho pelo pescoço e o sacudiu como se fosse uma almofada velha, um traste qualquer.

Tomando cuidado para que nenhum ruído, nenhum som estranho transpusesse as paredesdo escritório, Seu Joaquim soltou o safardana com um safanão:

- Não precisas tu me pagar mais nada. O restaurante é todo teu.
- Não sou teu escravo, Joaquim!
- Estupor! Escravo tem só um dono. Os porcos ambiciosos como tu têm tantos donos quantos eles vão precisar ter pela vida toda.

Ajeitou as lapelas do casaco, aprimorou o nó da gravata e dirigiu-se, calmo e sereno, para a mesa dos amigos. Ali, como de resto na cidade inteira, ninguém sabia que Seu Joaquim tinha parte na firma.

O robalo foi acompanhado de vinho verde, sorvo a sorvo. Ninguém traduziu a mensagem nos olhos frios daquela grande liderança da cidade. A vingança é sim, um prato que se come frio.



Capítulo 7

BATIDA DE FRENTE



Patrício ganhava sempre. Era de sua têmpera. A Casa de Pasto da Ilha já não era a mesma. De repente, deixou de ser o restaurante da moda. As figuras públicas e notórias de Realeza tinham se deslocado, paulatinamente, para outros restaurantes, outras boas casas do ramo. Justas aquelas que Seu Joaquim passara a frequentar com sua roda de amigos.

A Casa de Pasto então foi se transformando rapidamente em uma próspera distribuidora de produtos nacionais e importados. Patrício Manuel sabia fazer a hora; não esperava acontecer.

No último sábado de um mês qualquer, ele telefonou para São Paulo para encomendar mais uma boa partida de café solúvel.

Soube, pelo vendedor que o atendeu e a bem de conversa, que o preço do vidro maior de Nescafé – dono então de 99% do mercado nacional – saltaria na segunda-feira de Cr$ 2,70 para Cr$ 9,80 a unidade.

Patrício não largou o telefone enquanto não convenceu o representante a lhe remeternaquela semana ainda, ao invés das mil caixas que pretendia encomendar, nada menos de 15 mil. O negócio ficou em 10 mil caixas de 12 unidades. O bastante para suprir todo o mapa comercial daquele descafeinado Cone Sul do mundo.

De imediato, sem perda de tempo, Patrício mandou alguns funcionários e outros tantos amigos arrematarem todo o estoque de todas as casas do ramo das redondezas: mercados, bares, restaurantes, armazéns de esquina, casa de secos e molhados.

Na semana seguinte, só a Distribuidora da Ilha tinha café solúvel para vender na cidade. Durante um mês só ela vendia Nescafé na praça e arredores. Naquele tempo praticamente não havia similares nem genéricos de café instantâneo. Lucrou os tubos.

No mês seguinte, furado o bloqueio, os outros comerciantes restabeleceram os seus estoques. Patrício, cortou pela metade seus preços e continuou ganhando, sem concorrência, o dobro do que pagara para São Paulo. Vendia mais barato para o mercado regional que a própria fábrica.

Fez muitos negócios assim. Até com latas de pêssego, uma vez, ele aplicou a mesma estratégia. Tanto ganhou com enlatados que, fazia promoções com postos de combustível. Trocava latas de conserva por litros de diesel e gasolina. Estava em franco progresso.

Ninguém naquela região crescia tanto, com tanto lucro. Ele mesmo fazia seus negócios. Tudo era tratado diretamente entre ele e os fornecedores.

Com freqüência viajava, em seu Mercedes-Benz, à capital do Estado para concluir negociações de alto vulto.

Foi numa dessas viagens que os freios ABS de seu carro falharam e ele bateu de frente numa árvore à margem da rodovia, a mais de 170 km/h. Não sobrou nada. Nem pistas que explicassem a falha mecânica num carro como aquele.

Coisa de quatro ou cinco dias depois do enterro do ambicioso comerciante é que algumas pessoas ficaram sabendo que Seu Joaquim era o outro dono do restaurante, já com status de armazém e rentável distribuidora de alimentos.

Foi em respeito à alma de Patrício Manuel que o venerável senhor provedor de hospitais, anunciou à sociedade regional o fechamento das portas e o encerramento definitivo das atividades da Casa de Pasto da Ilha.

Os advogados, na abertura do inventário, souberam que, além dos bens deixados pelo próspero e ganancioso lusitano tragicamente falecido, havia uma apólice de seguro no valor de Cr$ 500 mil em favor dos sócios, para o caso da morte de um ou de outro. Se ocorresse o passamento de ambos, tudo iria para os cofres da Sociedade Benemerente.

Morreu apenas Patrício Manuel.

O espólio foi benemerente para o Seu Joaquim. Ele, magnânimo, repartiu com a Sociedade Benemerente Luso-Realense metade do dinheiro que por bem, de fato e de direito herdara de Patrício Manuel.

Ninguém sequer cogitou de um laudo pericial sobre a falha dos freios ABS. Nem mesmo a Seguradora.

  
Capítulo 8

PÃO, PÃO; QUEIJO, QUEIJO.


Pois, tudo ia muito bem, tudo ia de vento em popa na pequena Panificadora Esperanza, num ponto mais retirado do centro da cidade, bem próximo a um colégio da prefeitura. Era propriedade de Ramon, um jovem espanhol de seus 25, 26 anos.

Ramon era de Zaragoza, capital de Aragão, a meio caminho de Madri, Barcelona, Valência e Bilbao. Você decide. Num outono pra lá de velho, o rapazote chegara esbaforido a Realeza do Sul à cata das oportunidades que haviam lhe contado a respeito do mercado de trabalho ao sul do Brasil.

Dom José Cristóbal o recebeu de braços abertos. Garantiu-lhe a arrancada para uma nova vida. A padaria naquela esquina bem que poderia ser um bom negócio, desde que ele tivesse aptidões e real desejo de vencer na vida. 

A Panificadora Esperanza era toda sua menos uma pequena parte de 35% sobre o lucro líquido de cada mês que parava no bolso de Dom Cristóbal, "para amortecer o custo do empréstimo".

Como tinha abertura suficiente com o rapaz, sugeriu-lhe que o controle do Caixa poderia ficar com Yolanda, sua filha mais moça e ainda donzela. Prontamente, a proposta foi aceita e Yolanda Cristóbal virou funcionária da Esperanza.

Um ano se passou de árdua labuta. Inclusive com alguns serões mais do que necessários, tamanho era o movimento da empresa de massas e pães inimitáveis em gosto e aparência.

Nisso foi, até que Yolanda engravidou. Contou tudo a dona Micaela, sua mãe. Dom José Cristóbal soube de tudo pela amantíssima esposa. Não pareceu não dar a menor importância para o fato que, naquela época, era uma vergonha tão inadmissível quanto imperdoável.

Só exigiu uma coisa: os dois, Yolanda e Ramon, tinham que casar imediatamente. Sem pompa e sem circunstância. Dito e feito. Casaram e foram tocar a vida a dois. O mundo para Dom José Cristóbal era assim mesmo: pão, pão; queijo, queijo.


Capítulo 9

PÃO E LEITE PRA SEMPRE


Dom Cristóbal foi em frente com sua rotina incansável de padeiro convicto. Visitando, todo santo dia, uma por uma, todas as padarias de sua rede espalhada pelos quatro cantos de Realeza do Sul.

Era uma tarefa árdua que, começava por volta de três da madrugada e se estendia até às oito, nove horas da noite. De segunda a domingo, sem parar. Uma escravidão.

Aquele périplo se dava desde que, num acordo tácito com Seu Joaquim, tinha fundado a sua primeira panificadora: A Vencedora. Nunca fazia o mesmo roteiro. Aquela padaria que fosse visitada hoje às quatro da manhã, no dia seguinte seria visitada ao cair da tarde. De vez em quando, dava uma incerta e repetia a visita. A coisa funcionava assim. Religiosamente.

Quase nove meses tinham se passado, desde a notícia da gravidez de Yolanda. Se fosse homem, Dom Cristóval seria avô de Esteban; se fosse mulher, sua neta seria chamada de Cecília, nome de sua mãe a quem, desde que ele viera para o Brasil, nunca mais tinha visto.

Plena madrugada de uma sexta-feira. Dom Cristóbal entra na panificadora Esperanza, vai direto ao pequeno escritório da padaria e dá de cara com Ramon debruçado sobre a escrivaninha, com uma faca enfiada no peito, a mão direita e o rosto banhados em sangue.

Dom Cristóbal grita desatinado. Chama os padeiros que, estupefatos, deparam com aquele quadro infernal.

Logo a polícia chegou ao local da tragédia. O delegado De Carlo, pau pra toda obra, chama Dom Cristóbal a um canto da sala, longe dos peritos e dos funcionários curiosos, mostra-lhe o pequeno bilhete respingado de sangue:

- Dom José, perdoe-me. Sou casado. Tenho dois filhos em Zaragoza. Não deixe Yolanda saber. Nem minha gente na Espanha".

O bilhete saiu das mãos do policial para o bolso de Dom Cristóbal. Ninguém soube de nada. O caso foi encerrado como suicídio. Yolanda recebeu a Esperanza como herança.

Hoje, Esteban, filho de Ramon e neto de Cristóbal, é o proprietário-gerente da panificadora.

De Carlo nunca mais precisou pagar pão e leite nas padarias da rede A Vencedora.

E então, naquela cidade, era tudo bem assim mesmo. Um acidente de carro, dependendo do carro e do seu motorista era um acidente, nada mais que um acidente. Um suicídio era sempre um suicídio. E, assim sendo, assim era.
Capítulo 10

MÃOS LIMPAS


Ora essa – concluía Fernando Berttucci com razões de sobra - se todos faziam vista grossa para todos os pecados cometidos pela nata da sociedade, por que cargas d’água iriam botar caraminholas num simples caso de herança legítima e universal, como a que Dom Genaro lhe deixara?

Aquele desastre com Patrício Manuel na estrada carreteira que ligava Realeza à capital era uma espécie de guarda-chuva para rebater eventuais respingos de especulações maldosas.

Para desconfiarem dele, teriam que passar por cima do cadáver do ínclito Seu Joaquim. Fernando era do ramo. Já fazia parte das forças-vivas da comunidade.

E Dom Cristóbal? A morte matada do seu genro indigesto era mesmo o quê? Afinal, a providencial herança ficara com a filha de el gran señor de los españoles en la aldea...

Por essas e outras, Fernando Berttucci pulava e andava para nhenhenhéns e fuxicos que pudessem saltitar daqui pra lá, de lá pra cá no meio dos invejosos de sempre.

Bolas, cadê as provas? Cadê? - perguntava-se Berttucci como que adivinhando para bem mais adiante o surgimento de uma mulher como primeira-presidenta do Brasil que falaria bem assim desse jeito. Cadê as provas, cadê? Insistia, em nome de sua irretocável moral.

No lado fino da cidade, a sociedade desfilava pelos salões, no permanente cerimonial de beija-mãos que reverenciava Carlos Everton De Letterion, a mais notória e a mais sofisticada biba, colunista do matutino Diário de Realeza.

Esse jornal era a célula-mãe do vespertino A Opinião Geral que promovia ao final de cada ano o Baile Fogueira das Vaidades, uma ode aos 10 Homens do Ano e às 10 Mais Elegantes da cidade.

O prestígio social decorria do quanto lhe pagavam para não figurar na ameaçadora lista das 10 Mais Cafonas e dos 10 Bokomokos, uma ameaça velada de sua página diária “Encontro Fortuito” - um primor de colunismo marrom. E, porque molhavam suas ávidas mãos, a coluna acachapante nunca se concretizou em termos de publicação.

O jornal não permitiria, mas os deslumbrados tinham medo. Por via das dúvidas e na mais santa tradição do olho-branco, a elite borbulhante lavava as mãos. Mas não pincelava a garganta com azul de metileno para limpá-la dos sapos que engolia. Mãos limpas, alma lavada.

O lucro e o sucesso de De Letterion vinham dos modelos desenhados pelo próprio colunista para aquelas que tinham o seletivo convite para participar de cada noite de champanhota do hight-society – uma camada de duvidosa cultura européia, para quem desembarcava no cais da portuária Onda do Mar.

A bicha, dublê de repórter e estilista, em pouco tempo tinha tanto poder quanto dinheiro. Fez furor, por muito tempo.

Ditou moda, mudou comportamentos, seduziu menores e maiores e, com sua fama de fresco, traçou muita cortesã da aldeia, chifrou muito formigão exibido e colorido daquelas altas rodas. Não chegava a ser espada, mas era um gilete respeitável. De quando em vez cortava dos dois lados.

Sua palavra, sua coluna tinham força de lei na camada mais alta do cotidiano de Realeza e adjacências. Ditava moda. E modos.

Fernando e Helena Berttucci eram ungidos com o título de cidadãos acima de qualquer suspeita, para o que bem quisessem e entendessem; para o que desse e viesse. Eram abençoados pela pena poderosa de De Letterion.

Nunca, jamais, houve qualquer sombra de dúvida quanto ao ataque fulminante de coração de Dom Genaro que sedimentou a vida e a história de sucesso dos Berttucci. Numa época em que se morria de nó nas tripas, barriga d’água, derrame, um ataque do coração era a coisa mais natural da vida que inexoravelmente levava à morte.

Nunca se deu um pio a respeito, como também nada foi cogitado quanto à herança bendita que Patrício Manuel legara, por força do destino cruel, ao magnânimo Seu Joaquim.

Da mesma maneira, nada se contrapunha à versão definitiva do suicídio de um jovem panificador que morrera à espanhola.


Capítulo 11

A PERUCA


Os jeitos e trejeitos de De Letterion eram um salvo-conduto para quem circulasse nas mais privadas rodas de madames da cidade. Rodas de madames - não rodas das madames, como possam imaginar mentes um tanto quanto libidinosas. Ele não representava mais do que chacota para os garanhões das requintadas e notórias socialites.

Mas, o diabo é mais diabólico quando parece respeitável. De Letterion era o medonho, tinha o cão no corpo, no bom sentido. Seus pequenos demônios o ensinaram que o grande toque era guardar as aparências, assim ganhava a confiança dos demais.

Ele se deliciava consigo mesmo; acometia-se de verdadeiros frenesis só de ver que aparência linda e perfeita tinha a sua falsidade. Verdade é que, em coisas da corte, o que vale pouco é esquecido e o que vale muito é perseguido.

Mesmo numa sociedade em que não é raro trocar a honra por uma distinção honorífica, é prova obrigatória defender-se a dignidade quando a ofensa emerge dos lençóis e ultrapassa o que seria segredo de alcova.

Descoberta a injúria; lavrado o flagrante, o bicho pega. Nesses casos, ninguém banca Pilatos. Qualquer um suja as mãos.

Pois certo maldito dia, os arroubos de bissexualidade do repórter de butique com uma dadivosa senhora provocaram um ataque de justa e envergonhada ira no marido traído.

Mais do que a infidelidade da própria mulher, mais do que a cólera pela traição dela, o vexame de se tornar um corno conhecido levou o indignado esposo ao mais extremo e irrefreável ato de ódio e violência. Porra, corno de uma bichona! Ninguém aguenta um repuxo desses.

Naquela incerta e gélida madrugada, na porta de entrada do conhecido Chatô do KaloKa – um mafuá de consentidas bagunças homossexuais - encontraram numa deselegante posição, o corpanzil inerte do hipocritamente venerado cronista De Letterion.

Ele estava caído ao lado de sua peruca perfurada por uma bala de amargo sabor 38. Um cavaleiro de fina estampa como ele, não merecia um fim tão degradante e sem qualquer encanto e fineza. Meteram-lhe uma bala na boca. Ela saiu pelo topo do crânio.

A confraria gay, então chamada sem pruridos politicamente incorretos de viadagem, escandalizou-se muito mais do que se alarmou: nada mais revelador. Aquela degradante cena tirava do armário toda e qualquer dúvida que ainda pairasse sobre o corpo estendido no chão: Noooossa, que tristeza aquela peruca!

O sangue que lavava a estreita calçada escorria do crânio e do baixo-ventre do alfenado que sabia demais da vida em sociedade.

As diversas perfurações a faca pareciam contar que o assassino procurara os órgãos genitais do safista para satisfazer sua fúria, sua vingança. Um tipo de aviso: toda vergonha será castigada.

O cara definitivamente não gostou de ser chifrado por um bambi enfeitado que sabia o que não devia e se metera a fazer o que não sabia.

Muito mais do que improvável, era tecnicamente impossível não haver, para a perícia criminal, uma única pista deixada pelo assassino.

A própria socialite – pivô do crime – não teria como guardar só para ela e o corno do seu marido, a repercussão de tamanha tragédia.

Os que formavam o círculo de amizades da corte citadina murmuravam hipóteses e calavam indícios.

Ficou parado no ar o murmúrio proposital de que o motivo do crime era chantagem. Ele tinha o rabo de todos na mão. E quem tinha rabo tinha medo.

O tempo é um rio de acontecimentos, uma corrente impetuosa, um caudal de renovadas ondas que levam tudo por diante, numa viagem de ida, sem volta. E assim tudo passou.

Até hoje, para a polícia, para a justiça e para a sociedade de Realeza do Sul, ninguém matou o bofe De Letterion.

Para a cidade – tanto para a corte, quanto para a periferia ignara – Carlos Everton De Letterion apenas morreu. O assunto também morreu. Foi morto e sepultado no caldeirão do inferno social. E os anjos da vaidade descansaram em paz e disseram amém.


Capítulo 12

CEGOS, SURDOS, MUDOS


Não, a morte súbita do colunista não deixara os berttuccis, joaquins e cristóbales da terrinha medonha sem retaguarda. A proteção vinha do outro lado da cidade. Sem, o mesmo charme, mas com o mesmo veneno dos requintes dos cristais que tilintam na face glamorosa da sociedade.

No lado duro da comunidade, os delegados se dividiam entre a organização do crime e sua projeção no seio da dita sociedade honrada.

Um tratava do lenocínio; outro da prostituição pura e simples; o terceiro do jogo do bicho; alguém ficava com o trânsito e seus despachantes; o resto ia para a caixinha da boa-vontade que facilitava a convivência com o grande xerife regional, um pavão misterioso de passadas de algodão, de apertos de mão frios e peçonhentos que falava sem olhar nos olhos. Um intocável.

A política esperava pelos projetos e apelos da comunidade. Os nobres vereadores, os diligentes secretários municipais, os chefes do Executivo esperavam sentados, maior representatividade junto aos governos do Estado e da União. Cansavam de esperar. Mas não largavam o osso.

Os homens de boa vontade na terra eram salvos dos quintos do inferno pelas bênçãos sacrossantas que abrigavam até os pobres e oprimidos, com as preces da missa das dez, na pomposa Catedral.

Na periferia, os cultos de domingo eram rezados pelo popular padre Ery Chettola – pároco de uma vila ferroviária, pai e padrinho de dois ou três bastardos coroínhas, produzidos às pressas nas cercanias da providencial e útil pia batismal.

Ele tinha o amém da confraria religiosa que só vê pecado nos cordeiros do mundo que ficam do lado de lá dos muros de seus templos.

Chettola não era fácil. Saía de “mariquita” no carnaval. Gostava da noite. Tomava todas. Comia umas que outras. Mas não perdia, jamais, a missa do dia seguinte.

Naquele domingo já perdido nas priscas eras, ainda sob os efeitos da gandaia cometida sábado no roteiro da folia por casas noturnas e abrigos de boas mulheres de fácil vida boa com quem dividia cobertores, o padre Chettolla repartia o pão da paróquia suburbana com os fiéis do populoso bairro.

Ainda com o cérebro enunviado, o celebrante notou dois fiéis ajoelhados na frente do altar. Com o cálice consagrador nas mãos, foi primeiro até à fervorosa jovem a quem, antes de oferecer a hóstia divina, perguntou:

- Vieste, minha irmã, tomar a comunhão?
- Não... – Disse ela. Ele, então, dirigiu-se ao rapaz do seu lado:
- E tu, filho de Deus, vieste comungar?
- Não.
- Então, o que vocês dois estão fazendo aqui?
- Padre, nós estamos só esperando que o senhor realize o nosso casamento.

Na verdade, essa era uma história criada e contada pela sabedoria popular para mostrar que todo mundo por ali sabia muito bem quem era o pároco do seu bairro.

Ele próprio, qual um desses delúbios,  se encarregava de espalhar a piada de salão, em cores folclóricas, pelos quatro cantos da diocese.

Os católicos, apostólicos, romanos, carismáticos, cursilhistas, seguidores da teologia da libertação e tantos mais quanto uma religião e seus mentores possam congregar fingiam nada ver, nada saber e por isso nada diziam, nada faziam numa clara premonição do que seria regra geral em governos posteriores de todas as esferas.

Todo mundo era cego, surdo, mudo. Hoje, qualquer um ali poderia virar presidente da República. Quem pediu a sua excomunhão foi excomungado. Tinha uma claque enorme. Era a cara sacrossanta da cidade.


Capítulo 13

PELAS BEIRADAS


Por essas e outras, Dom Fernando sabia que Realeza do Sul era um centro de lordes falidos sustentados pelos resquícios de paciência e vitalidade dos ianques do Anglo Right S/A ou da White Martinic que ainda sustentavam o capital-vagabundo dos estabelecimentos creditícios citadinos.

E assim, porque todo mundo tinha rabo preso, Dom Fernando Berttucci dava de ombros a cada comentário maldoso que lhe chegasse aos ouvidos por causa daquela história da herança que lhe caiu no colo.

Ele se convencera de que ao invejoso se deve dar a impressão de que faz bem ao fígado de todos nós enaltecermos como magníficas as atitudes dos rivais; daqueles que gostariam de estar na nossa pele, no nosso lugar. Passou assim a tratar ainda com mais fidalguia e extrema bondade todos quantos dele se acercassem, sem distinção de vícios ou virtudes.

Por tudo isso e tudo mais que isso, Helena já não precisava ser modista. Escolheu ser dona-de-casa e também das horas vagas que preenchia como esposa, amada e amante de Fernando.

Dessas raízes caseiras, nasceram seus três filhos, de quem se consagrou mãe extremada. Mas nem tanto assim, a ponto de ser daquelas de “repartir sorrindo o coração e entregar um pedaço a cada filho” como reza o poema do advogado, poeta e seresteiro gaúcho Juliné Siqueira, já falecido mas de viva memória no seio da cultura rio-grandense.

Em síntese, Fernando e Helena tinham plena consciência de que para conquistar aquele admirável mundo novo,  precisavam guardar sob a pele o fluxo de humores e desamores que corriam pelas artérias da pequena selva de paralelepípedos que haviam escolhido para a construção de sua própria história.

Removiam percalços e tapavam buracos no cotidiano, como a cidade removia os trilhos de bonde para dar vez e lugar aos primeiros sinais de asfalto, o revestimento de betume das ruas que o vulgo ainda chamava de piche. Nos jantares que ofereciam à grande roda, comiam pelas beiradas.

Os Poderes constituídos, as instituições sociais, as entidades de classe, os organismos de defesa da população, estavam contagiados pelo vírus da degenerescência ética. A moral não tinha nada que interferir no moral da tropa de choque da alta sociedade, da elite, do batalhão de vencedores, da legião de patrões, amos e senhores do proletariado que completava a alma, o coração e a vida de Realeza do Sul.

O ruído dos pífaros encantava os impudicos faunos que ocupavam a flora local. Era preciso e fazia muito bem ao corpo e ao espírito de todo mundo, dançar conforme a música.


Capítulo 14

ACIMA DO NÍVEL

Por causa dessa emergência toda, desse burburinho social, desse rebuliço politiqueiro, coisas dos conglomerados humanos que a cada dia mais civilizados ficam, as férias anuais na Europa eram mais que merecidas. E os filhos, penhorados, agradeciam pelas sistemáticas temporadas de libertação das apertadas amarras paternas.

Há mais de dez dias que os pais viajavam; há mais de dez dias que os filhos festejavam.

Um dia sim, outro também, a nata da juventude transviada ocupava os jardins, os salões, as suítes do casarão situado numa rua sem saída, entre a praça e a igreja de Realeza do Sul, como faz bem a uma cidade de porte médio, encravada por ali, naquele pedaço destemperado dos Pampas, onde começa um Brasil que olha de frente para o Norte.

A bebida corria em doses fartas. Jack Daniel’s fazia cada meninão daqueles sentir-se um pouco da turma do Frank Sinatra.

Alguns tomavam leite no gargalo das garrafas tiradas da geladeira para encarnar James Dean; outros usavam uma meia-soquete vermelha no pé direito e outra verde, no esquerdo, para imitar a rebeldia do encantador e airosamente desprotegido Sal Mineo.

Todas as moçoilas queriam ser um pouco mais Nathalie Whood do que Grace Kelly. Já as madames faziam de tudo para se darem mais os ares de Audrey Hepburne, do que clonar Ingrid Bergman.

Era tempo de combinar blazer azul-marinho com calças cor-de-cinza e mocassins. Cara-pálida não usava brilhantina, nem tinha topete. Uma geração de bom trato e fina estampa. Só por fora.

Todo mundo tinha outro por dentro. Assim caminhava a humanidade e se rebelava a juventude transviada.

Naquela festa nada era diferente. As coisas corriam ao natural. Nada além de risos, olhares, gestos, trocas de carícias, batalhas de amor, joguinhos de conquista. Era só mais uma festa na mansão dos Berttucci.

Uma festa e um flash. Um maldito raio; um raio de invasor.

Lívidos ainda pelo impacto do que acontecera no quarto, já misturados outra vez ao bloco dos rebeldes sem causa, Grazziella e Vinicius não conseguiram encontrar em nenhum dos circunstantes qualquer sinal de que tivessem feito, visto ou ouvido algo além de muitas doses acima do nível do mar.

Ou acima do nível das vagas do Balneário dos Pirineus, praia-refúgio na Lagoa Doce, a pouco tempo dali, para quem fosse filhinho de papai dono de um dos automóveis da época - De Sotto, Studbaker, Simca, Citröen, DKW, um calmo e sereno Austin A-40, ou um portentoso A-95.

Vasculhando com o verde de seus olhos o ambiente geral, sem deixar-se notar por isso, Grazziella sussurrou preocupada para Vinícius:

- Não acredito que tenha sido alguém daqui...
- Também acho. Aqui só tem convidados.
- Mas, quem seria então?
- Sei lá, o diabo é saber o que esse bastardo queria. Vem aí dor de cabeça...