sábado, 19 de maio de 2012

Capítulo 10

MÃOS LIMPAS


Ora essa – concluía Fernando Berttucci com razões de sobra - se todos faziam vista grossa para todos os pecados cometidos pela nata da sociedade, por que cargas d’água iriam botar caraminholas num simples caso de herança legítima e universal, como a que Dom Genaro lhe deixara?

Aquele desastre com Patrício Manuel na estrada carreteira que ligava Realeza à capital era uma espécie de guarda-chuva para rebater eventuais respingos de especulações maldosas.

Para desconfiarem dele, teriam que passar por cima do cadáver do ínclito Seu Joaquim. Fernando era do ramo. Já fazia parte das forças-vivas da comunidade.

E Dom Cristóbal? A morte matada do seu genro indigesto era mesmo o quê? Afinal, a providencial herança ficara com a filha de el gran señor de los españoles en la aldea...

Por essas e outras, Fernando Berttucci pulava e andava para nhenhenhéns e fuxicos que pudessem saltitar daqui pra lá, de lá pra cá no meio dos invejosos de sempre.

Bolas, cadê as provas? Cadê? - perguntava-se Berttucci como que adivinhando para bem mais adiante o surgimento de uma mulher como primeira-presidenta do Brasil que falaria bem assim desse jeito. Cadê as provas, cadê? Insistia, em nome de sua irretocável moral.

No lado fino da cidade, a sociedade desfilava pelos salões, no permanente cerimonial de beija-mãos que reverenciava Carlos Everton De Letterion, a mais notória e a mais sofisticada biba, colunista do matutino Diário de Realeza.

Esse jornal era a célula-mãe do vespertino A Opinião Geral que promovia ao final de cada ano o Baile Fogueira das Vaidades, uma ode aos 10 Homens do Ano e às 10 Mais Elegantes da cidade.

O prestígio social decorria do quanto lhe pagavam para não figurar na ameaçadora lista das 10 Mais Cafonas e dos 10 Bokomokos, uma ameaça velada de sua página diária “Encontro Fortuito” - um primor de colunismo marrom. E, porque molhavam suas ávidas mãos, a coluna acachapante nunca se concretizou em termos de publicação.

O jornal não permitiria, mas os deslumbrados tinham medo. Por via das dúvidas e na mais santa tradição do olho-branco, a elite borbulhante lavava as mãos. Mas não pincelava a garganta com azul de metileno para limpá-la dos sapos que engolia. Mãos limpas, alma lavada.

O lucro e o sucesso de De Letterion vinham dos modelos desenhados pelo próprio colunista para aquelas que tinham o seletivo convite para participar de cada noite de champanhota do hight-society – uma camada de duvidosa cultura européia, para quem desembarcava no cais da portuária Onda do Mar.

A bicha, dublê de repórter e estilista, em pouco tempo tinha tanto poder quanto dinheiro. Fez furor, por muito tempo.

Ditou moda, mudou comportamentos, seduziu menores e maiores e, com sua fama de fresco, traçou muita cortesã da aldeia, chifrou muito formigão exibido e colorido daquelas altas rodas. Não chegava a ser espada, mas era um gilete respeitável. De quando em vez cortava dos dois lados.

Sua palavra, sua coluna tinham força de lei na camada mais alta do cotidiano de Realeza e adjacências. Ditava moda. E modos.

Fernando e Helena Berttucci eram ungidos com o título de cidadãos acima de qualquer suspeita, para o que bem quisessem e entendessem; para o que desse e viesse. Eram abençoados pela pena poderosa de De Letterion.

Nunca, jamais, houve qualquer sombra de dúvida quanto ao ataque fulminante de coração de Dom Genaro que sedimentou a vida e a história de sucesso dos Berttucci. Numa época em que se morria de nó nas tripas, barriga d’água, derrame, um ataque do coração era a coisa mais natural da vida que inexoravelmente levava à morte.

Nunca se deu um pio a respeito, como também nada foi cogitado quanto à herança bendita que Patrício Manuel legara, por força do destino cruel, ao magnânimo Seu Joaquim.

Da mesma maneira, nada se contrapunha à versão definitiva do suicídio de um jovem panificador que morrera à espanhola.


Capítulo 11

A PERUCA


Os jeitos e trejeitos de De Letterion eram um salvo-conduto para quem circulasse nas mais privadas rodas de madames da cidade. Rodas de madames - não rodas das madames, como possam imaginar mentes um tanto quanto libidinosas. Ele não representava mais do que chacota para os garanhões das requintadas e notórias socialites.

Mas, o diabo é mais diabólico quando parece respeitável. De Letterion era o medonho, tinha o cão no corpo, no bom sentido. Seus pequenos demônios o ensinaram que o grande toque era guardar as aparências, assim ganhava a confiança dos demais.

Ele se deliciava consigo mesmo; acometia-se de verdadeiros frenesis só de ver que aparência linda e perfeita tinha a sua falsidade. Verdade é que, em coisas da corte, o que vale pouco é esquecido e o que vale muito é perseguido.

Mesmo numa sociedade em que não é raro trocar a honra por uma distinção honorífica, é prova obrigatória defender-se a dignidade quando a ofensa emerge dos lençóis e ultrapassa o que seria segredo de alcova.

Descoberta a injúria; lavrado o flagrante, o bicho pega. Nesses casos, ninguém banca Pilatos. Qualquer um suja as mãos.

Pois certo maldito dia, os arroubos de bissexualidade do repórter de butique com uma dadivosa senhora provocaram um ataque de justa e envergonhada ira no marido traído.

Mais do que a infidelidade da própria mulher, mais do que a cólera pela traição dela, o vexame de se tornar um corno conhecido levou o indignado esposo ao mais extremo e irrefreável ato de ódio e violência. Porra, corno de uma bichona! Ninguém aguenta um repuxo desses.

Naquela incerta e gélida madrugada, na porta de entrada do conhecido Chatô do KaloKa – um mafuá de consentidas bagunças homossexuais - encontraram numa deselegante posição, o corpanzil inerte do hipocritamente venerado cronista De Letterion.

Ele estava caído ao lado de sua peruca perfurada por uma bala de amargo sabor 38. Um cavaleiro de fina estampa como ele, não merecia um fim tão degradante e sem qualquer encanto e fineza. Meteram-lhe uma bala na boca. Ela saiu pelo topo do crânio.

A confraria gay, então chamada sem pruridos politicamente incorretos de viadagem, escandalizou-se muito mais do que se alarmou: nada mais revelador. Aquela degradante cena tirava do armário toda e qualquer dúvida que ainda pairasse sobre o corpo estendido no chão: Noooossa, que tristeza aquela peruca!

O sangue que lavava a estreita calçada escorria do crânio e do baixo-ventre do alfenado que sabia demais da vida em sociedade.

As diversas perfurações a faca pareciam contar que o assassino procurara os órgãos genitais do safista para satisfazer sua fúria, sua vingança. Um tipo de aviso: toda vergonha será castigada.

O cara definitivamente não gostou de ser chifrado por um bambi enfeitado que sabia o que não devia e se metera a fazer o que não sabia.

Muito mais do que improvável, era tecnicamente impossível não haver, para a perícia criminal, uma única pista deixada pelo assassino.

A própria socialite – pivô do crime – não teria como guardar só para ela e o corno do seu marido, a repercussão de tamanha tragédia.

Os que formavam o círculo de amizades da corte citadina murmuravam hipóteses e calavam indícios.

Ficou parado no ar o murmúrio proposital de que o motivo do crime era chantagem. Ele tinha o rabo de todos na mão. E quem tinha rabo tinha medo.

O tempo é um rio de acontecimentos, uma corrente impetuosa, um caudal de renovadas ondas que levam tudo por diante, numa viagem de ida, sem volta. E assim tudo passou.

Até hoje, para a polícia, para a justiça e para a sociedade de Realeza do Sul, ninguém matou o bofe De Letterion.

Para a cidade – tanto para a corte, quanto para a periferia ignara – Carlos Everton De Letterion apenas morreu. O assunto também morreu. Foi morto e sepultado no caldeirão do inferno social. E os anjos da vaidade descansaram em paz e disseram amém.


Capítulo 12

CEGOS, SURDOS, MUDOS


Não, a morte súbita do colunista não deixara os berttuccis, joaquins e cristóbales da terrinha medonha sem retaguarda. A proteção vinha do outro lado da cidade. Sem, o mesmo charme, mas com o mesmo veneno dos requintes dos cristais que tilintam na face glamorosa da sociedade.

No lado duro da comunidade, os delegados se dividiam entre a organização do crime e sua projeção no seio da dita sociedade honrada.

Um tratava do lenocínio; outro da prostituição pura e simples; o terceiro do jogo do bicho; alguém ficava com o trânsito e seus despachantes; o resto ia para a caixinha da boa-vontade que facilitava a convivência com o grande xerife regional, um pavão misterioso de passadas de algodão, de apertos de mão frios e peçonhentos que falava sem olhar nos olhos. Um intocável.

A política esperava pelos projetos e apelos da comunidade. Os nobres vereadores, os diligentes secretários municipais, os chefes do Executivo esperavam sentados, maior representatividade junto aos governos do Estado e da União. Cansavam de esperar. Mas não largavam o osso.

Os homens de boa vontade na terra eram salvos dos quintos do inferno pelas bênçãos sacrossantas que abrigavam até os pobres e oprimidos, com as preces da missa das dez, na pomposa Catedral.

Na periferia, os cultos de domingo eram rezados pelo popular padre Ery Chettola – pároco de uma vila ferroviária, pai e padrinho de dois ou três bastardos coroínhas, produzidos às pressas nas cercanias da providencial e útil pia batismal.

Ele tinha o amém da confraria religiosa que só vê pecado nos cordeiros do mundo que ficam do lado de lá dos muros de seus templos.

Chettola não era fácil. Saía de “mariquita” no carnaval. Gostava da noite. Tomava todas. Comia umas que outras. Mas não perdia, jamais, a missa do dia seguinte.

Naquele domingo já perdido nas priscas eras, ainda sob os efeitos da gandaia cometida sábado no roteiro da folia por casas noturnas e abrigos de boas mulheres de fácil vida boa com quem dividia cobertores, o padre Chettolla repartia o pão da paróquia suburbana com os fiéis do populoso bairro.

Ainda com o cérebro enunviado, o celebrante notou dois fiéis ajoelhados na frente do altar. Com o cálice consagrador nas mãos, foi primeiro até à fervorosa jovem a quem, antes de oferecer a hóstia divina, perguntou:

- Vieste, minha irmã, tomar a comunhão?
- Não... – Disse ela. Ele, então, dirigiu-se ao rapaz do seu lado:
- E tu, filho de Deus, vieste comungar?
- Não.
- Então, o que vocês dois estão fazendo aqui?
- Padre, nós estamos só esperando que o senhor realize o nosso casamento.

Na verdade, essa era uma história criada e contada pela sabedoria popular para mostrar que todo mundo por ali sabia muito bem quem era o pároco do seu bairro.

Ele próprio, qual um desses delúbios,  se encarregava de espalhar a piada de salão, em cores folclóricas, pelos quatro cantos da diocese.

Os católicos, apostólicos, romanos, carismáticos, cursilhistas, seguidores da teologia da libertação e tantos mais quanto uma religião e seus mentores possam congregar fingiam nada ver, nada saber e por isso nada diziam, nada faziam numa clara premonição do que seria regra geral em governos posteriores de todas as esferas.

Todo mundo era cego, surdo, mudo. Hoje, qualquer um ali poderia virar presidente da República. Quem pediu a sua excomunhão foi excomungado. Tinha uma claque enorme. Era a cara sacrossanta da cidade.


Capítulo 13

PELAS BEIRADAS


Por essas e outras, Dom Fernando sabia que Realeza do Sul era um centro de lordes falidos sustentados pelos resquícios de paciência e vitalidade dos ianques do Anglo Right S/A ou da White Martinic que ainda sustentavam o capital-vagabundo dos estabelecimentos creditícios citadinos.

E assim, porque todo mundo tinha rabo preso, Dom Fernando Berttucci dava de ombros a cada comentário maldoso que lhe chegasse aos ouvidos por causa daquela história da herança que lhe caiu no colo.

Ele se convencera de que ao invejoso se deve dar a impressão de que faz bem ao fígado de todos nós enaltecermos como magníficas as atitudes dos rivais; daqueles que gostariam de estar na nossa pele, no nosso lugar. Passou assim a tratar ainda com mais fidalguia e extrema bondade todos quantos dele se acercassem, sem distinção de vícios ou virtudes.

Por tudo isso e tudo mais que isso, Helena já não precisava ser modista. Escolheu ser dona-de-casa e também das horas vagas que preenchia como esposa, amada e amante de Fernando.

Dessas raízes caseiras, nasceram seus três filhos, de quem se consagrou mãe extremada. Mas nem tanto assim, a ponto de ser daquelas de “repartir sorrindo o coração e entregar um pedaço a cada filho” como reza o poema do advogado, poeta e seresteiro gaúcho Juliné Siqueira, já falecido mas de viva memória no seio da cultura rio-grandense.

Em síntese, Fernando e Helena tinham plena consciência de que para conquistar aquele admirável mundo novo,  precisavam guardar sob a pele o fluxo de humores e desamores que corriam pelas artérias da pequena selva de paralelepípedos que haviam escolhido para a construção de sua própria história.

Removiam percalços e tapavam buracos no cotidiano, como a cidade removia os trilhos de bonde para dar vez e lugar aos primeiros sinais de asfalto, o revestimento de betume das ruas que o vulgo ainda chamava de piche. Nos jantares que ofereciam à grande roda, comiam pelas beiradas.

Os Poderes constituídos, as instituições sociais, as entidades de classe, os organismos de defesa da população, estavam contagiados pelo vírus da degenerescência ética. A moral não tinha nada que interferir no moral da tropa de choque da alta sociedade, da elite, do batalhão de vencedores, da legião de patrões, amos e senhores do proletariado que completava a alma, o coração e a vida de Realeza do Sul.

O ruído dos pífaros encantava os impudicos faunos que ocupavam a flora local. Era preciso e fazia muito bem ao corpo e ao espírito de todo mundo, dançar conforme a música.


Capítulo 14

ACIMA DO NÍVEL

Por causa dessa emergência toda, desse burburinho social, desse rebuliço politiqueiro, coisas dos conglomerados humanos que a cada dia mais civilizados ficam, as férias anuais na Europa eram mais que merecidas. E os filhos, penhorados, agradeciam pelas sistemáticas temporadas de libertação das apertadas amarras paternas.

Há mais de dez dias que os pais viajavam; há mais de dez dias que os filhos festejavam.

Um dia sim, outro também, a nata da juventude transviada ocupava os jardins, os salões, as suítes do casarão situado numa rua sem saída, entre a praça e a igreja de Realeza do Sul, como faz bem a uma cidade de porte médio, encravada por ali, naquele pedaço destemperado dos Pampas, onde começa um Brasil que olha de frente para o Norte.

A bebida corria em doses fartas. Jack Daniel’s fazia cada meninão daqueles sentir-se um pouco da turma do Frank Sinatra.

Alguns tomavam leite no gargalo das garrafas tiradas da geladeira para encarnar James Dean; outros usavam uma meia-soquete vermelha no pé direito e outra verde, no esquerdo, para imitar a rebeldia do encantador e airosamente desprotegido Sal Mineo.

Todas as moçoilas queriam ser um pouco mais Nathalie Whood do que Grace Kelly. Já as madames faziam de tudo para se darem mais os ares de Audrey Hepburne, do que clonar Ingrid Bergman.

Era tempo de combinar blazer azul-marinho com calças cor-de-cinza e mocassins. Cara-pálida não usava brilhantina, nem tinha topete. Uma geração de bom trato e fina estampa. Só por fora.

Todo mundo tinha outro por dentro. Assim caminhava a humanidade e se rebelava a juventude transviada.

Naquela festa nada era diferente. As coisas corriam ao natural. Nada além de risos, olhares, gestos, trocas de carícias, batalhas de amor, joguinhos de conquista. Era só mais uma festa na mansão dos Berttucci.

Uma festa e um flash. Um maldito raio; um raio de invasor.

Lívidos ainda pelo impacto do que acontecera no quarto, já misturados outra vez ao bloco dos rebeldes sem causa, Grazziella e Vinicius não conseguiram encontrar em nenhum dos circunstantes qualquer sinal de que tivessem feito, visto ou ouvido algo além de muitas doses acima do nível do mar.

Ou acima do nível das vagas do Balneário dos Pirineus, praia-refúgio na Lagoa Doce, a pouco tempo dali, para quem fosse filhinho de papai dono de um dos automóveis da época - De Sotto, Studbaker, Simca, Citröen, DKW, um calmo e sereno Austin A-40, ou um portentoso A-95.

Vasculhando com o verde de seus olhos o ambiente geral, sem deixar-se notar por isso, Grazziella sussurrou preocupada para Vinícius:

- Não acredito que tenha sido alguém daqui...
- Também acho. Aqui só tem convidados.
- Mas, quem seria então?
- Sei lá, o diabo é saber o que esse bastardo queria. Vem aí dor de cabeça...

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