sábado, 19 de maio de 2012

Capítulo 15

‘XA QUE EU PAGO


O papo de Grazzielle e Vinicius foi interrompido pela chegada do irmão mais novo da garota, Túlio – bonito, pele bronzeada, olhos negros curiosos, penetrantes, cabelos lisos e fartos, 1m83 de altura daquilo que os colunistas chamariam de displicente elegância. Tutti, para os íntimos. Ele a beijou afetuosamente no rosto e implicou sorridente:

-E aí, maninha, perdendo tempo com essa pintura aí... Você é bonita demais pra ele - disse brincalhão e provocador.

Nem ela nem Vinícius chegaram a responder. Sorriram. O cunhadinho da vez aproximou-se sorridente de Tutti e lhe deu um abraço afetuoso, daqueles cheios de cumplicidade, de parceiro pronto para tudo o que desse e viesse.

Bebericaram um pouco de boldo, só para fazer tipo, e logo desconversaram. Tutti pegou seu uísque e foi tratar de acertar os ponteiros com as serviçais que desempenhavam papel de garçonete.

Vinícius ficou exercitando a arte do beliscatessen por ali, enquanto Grazzielle circulava pelos salões agindo como uma moderna e requintada hostess.

Vinícius vendia a fama de prepotente bonito, novo-riquinho truculento, metido a valente. Comprava briga por nada. Usava seus conhecimentos de acadêmico de direito para bancar o defensor dos mais fracos. Só encarava parada dura.

Sabia brigar e gostava de brigar. Um craque em briga de rua. Seus feitos eram contados pelas rodas de exibição de vantagens que fluíam, com freqüência, pelas mesas de bares e restaurantes da cidade. E quem mais espalhava a fama de brigador de Vinícius era justamente Tutti, seu cunhado eventual. Não se cansava de repetir as proezas do bad boy, muitas das quais até curtira junto com ele.

Estava por ali, quando se viu cercado por uma roda de convidados, amigos da sua mesma idade que, sem mais o que fazer na festa, pediram-lhe que contasse umas das façanhas que mais gostava. Não se deu por rogado e passou a contar a história que sempre repetia para que servisse de alerta aos menos avisados... Entre um gole e outro, foi contando:

Num desses rabos sujos de uma velha e cansativa noite de farra, Vinicius chegara de um baile na zona rural e resolveu tomar a sopa da madrugada, no Boteco-24, um tradicional desaguadouro de tragos e mágoas noturnas.

No ranking da revista 4-Rodas, era um bar copo-sujo que parecia um vagão de trem. Havia mesas para quatro clientes, dos dois lados de um corredor que terminava no balcão, onde em banquetas de caubói, o freguês comia e bebia suas dores e suas mentiras. Os meninões da elite apareciam sempre por lá; as mocinhas, não.

O lugar estava cheio de bandidinhos da noite. A clientela tinha de tudo: garotos da alta, pés-rapados, brancos, negros, meninas de pensão e mulheres da vida. Tudo já comido e bebido. Ou apenas curando o porre na base da sopa e do caldo verde.

Mal botou o pé na soleira da porta e seus ouvidos de tuberculoso, captaram uma ofensa que partira de uma mesa, bem no meio da casa na lateral esquerda do bar, ocupada por um terrificante quarteto de enormes crioulos, certamente egressos da estiva do porto de cabotagem de Realeza.

Ele os conhecia da beira do cais. Já tinha comprado confusão com um deles, num puteiro lá por perto, fazia pouco tempo. Agora, a provocação fora algo assim, parecido com:

- Ei, manja só. Chegou aquele branquelo fiadaputa.

Vinícius fingiu que nada escutara. Caminhou calmo e firme, com um sorriso congelado no rosto, na direção do balcão lá no fundo. Quando chegou à altura da mesa do provocador, encarou o quarteto. Os caras tomavam uma suculenta canja em suas terrinas de cerâmica.

Vinícius reconheceu o maior deles. Era o tipo que, na semana passada, se acomodara em sua mesa, no salão da pensão da Walkiria, na Pracinha do Porto e, provocante, tomara um gole do seu copo de cerveja sem ser convidado para qualquer das duas coisas: sentar-se ali e beber sua cerveja.

Foi como se a reprise daquele filme passasse em sua cabeça. Vinícius relembrou a cena: chamou a garçonete, pediu outro copo e avisou:

- Leve este copo e esta cerveja daqui. E esse viado vai pagar a cerveja.

E, mais não disse. Desferiu uma tapona de mão virada nos dentes do intruso que foi parar embaixo da mesa defronte. Antes que ele se acordasse, Vinícius despediu-se e saiu para outro cabaré da cidade.

O filme sumiu. Vinícius voltou à realidade da hora. Pois, agora, ali estava o implicante outra vez... Vinícius baixou a cara junto à cara do homenzarrão negro que o provocara novamente e, olho no olho, boca juntando bafo de uísque ao bafo de comida do desafeto, perguntou com voz grave e cavernosa:

- O que tu tá fazendo aqui, no lugar dos brancos, negão feio?
- Tomando sopa, palhaço.
- Então, bom apetite! Cuida aí desse frango!

Lançou uma repelente cusparada no prato do desafeto e, abrindo o sorriso, como se nada tivesse acontecido retomou a caminhada rumo ao balcão. A dois passos dali sentiu no ombro o peso da manopla do estivador. Virou-se e tomou um soco no nariz.

O sangue encheu sua garganta e toldou seus olhos. Assim mesmo, reequilibrou-se e devolveu a gentileza. Pegou mal: foi às fuças daquele muro de lamentações. Derrubou o negão.

Daí pra frente, não contou, mas deve ter levado uns vinte socos na cara; dez nas costelas e nada menos de uma dúzia de merecidos pontapés no estômago e nos escrotos que até podiam ser roxos, mas não eram de ferro. Os outros três parceiros da sopa conspurcada bateram até cansar naquele bundinha-mole metido a galo de rinha.

Vinícius gritou, gemeu e sentiu uma dorzinha que abandonava o saco e lhe invadia o esfíncter. Ah! Que vontade de dormir e ir pro céu... Dado por vencido foi abandonado pelos estivadores que voltaram à mesa, antes que a sopa esfriasse. Pediram nova rodada daquele caldo e voltaram à tarefa de acabar com a ressaca.

Meio minuto depois, os dois coqueadores de saco que estavam de costas para Vinícius, mergulharam de cara dentro das cumbucas de sopa escaldante. A louça se partiu. Eles quebraram a cara. A sopa virou molho pardo.

Logo Vinícius virou a mesa onde ainda estavam dois deles e chutou os dentes de um e a testa do outro, sem que ambos tivessem tempo para qualquer reação.

Agora eram os estivadores que dormiam. Vinícius pegou um lenço, estancou o sangue do nariz quebrado e chutando a cabeça de um deles que lhe pareceu ainda acordado, saiu calmamente do boteco. Antes de chegar à rua, ainda gritou para o dono da casa:

- Bota a despesa na minha conta. ‘Xa comigo, amanhã eu acerto isso tudo!

Daí a dez minutos, um pouco menos, disse para o médico de plantão no hospital, que tinha sofrido um acidente de carro e batido com a cara num poste. Pediu também um remédio qualquer para aquela dorzinha chata que estava sentindo no ânus.

-Está doendo aí?!? – Desconfiou gaiato, o plantonista.
-Não é bem uma dor... É assim, uma vontade de ir aos pés... Uma vontade de... de fazer cocô... Porra, uma vontade de cagar, meu querido!

E Tutti se deliciava com as reações que suas narrativas causavam na turma que perdia tempo em escutar suas lorotas. Pior que escutar, era acreditar naquelas historietas, tão ricos de detalhes eram seus episódios.


Capítulo 16

SEM VESTÍGIOS


Da geração recente dos Berttucci, justamente o mais moço, Tutti era o encarregado de passar a lábia nas empregadas.

Tinha café no bule para tanto, já que preenchia as tardes de estudo em casa bolinando uma e assediando outra das duas governantas da casa, nem tão meninotas assim quanto ele era ainda um frangote.

Tutti deixou o salão e se foi para a cozinha - que aquilo que Vinícius tinha lhe confidenciado sobre o tal flash na suíte, ali no meio da festa, não era conversa que chegasse na sala.

Antes de sair da volta da mesa central no salão, ainda deu uma última olhada para a irmã – uma gata de 17 anos, olhos transparentes de Maysa Matarazzo, curvas de Martha Rocha.

Era impossível ter uma irmã melhor do que aquela, “embora fosse melhor não ter uma irmã melhor que as melhores irmãs dos que tinham irmãs por ali” – pensava com a cabeça já cheia de pedras de gelo conspurcadas de uísque e algumas ideias, assim estapafúrdias como esta, sem qualquer conseqüência.

Estava quase chegando ao seu curto destino quando sentiu no braço o toque do seu irmão Luciano – que suportava com fidalguia o apelido de Nano e carregava 23 anos nas costas, espalhados por 1m85 de estatura perfeita para ser craque de futebol e estrela do tênis e do golfe, esporte dos ricos e charmosos. Nano falou baixinho para Tutti:

- Ei, guri medonho. Tá indo lá garantir o silêncio das mucamas, né?
- Tô nessa, mermão...
- Boa, deixa que eu cuide do mordomo e dos garçons. É bom que os velhos nem fiquem sabendo dessa lambança – arrematou o irmão mais velho.

E assim era preparado o terreno já para o retorno dos pais, coisa por acontecer a qualquer momento da próxima semana. O silêncio dos serviçais era fundamental para quando os pais voltassem.

A noite virou madrugada e cada um, de tantos quantos se esbaldavam por ali, foi para o seu canto. Mesmo quem estava sozinho, andava mal acompanhado.

Tutti não. Ele não estava só, nem mal acompanhado. No meio da azáfama de limpeza geral de mais aquele fim de festa, ele arrastara Marizete – a mais nova e bonita das governantas – para um canto escuro da enorme despensa do casarão. Fechou a porta e, debruçou-a sobre uma pilha de sacas de cereal.

Os velhos – gatos escaldados da 2ª Grande Guerra – tinham a saudável mania de estocar alimentos. A despensa era um verdadeiro paiol de sacas de arroz, feijão, farinha. Munição para muitas lautas refeições, a qualquer tempo e a qualquer hora.

Mesmo com a aparente resistência da jovem, que temia ser flagrada pelos outros empregados, ele bruscamente levantou sua saia e baixou sua calcinha até à altura dos joelhos.

Ele saiu fora de si e entrou nela por trás invadindo a intimidade de sua consentida umidade, quente e prontamente acolhedora. Em cinco minutos, não mais, ele a encheu de sua fúria líquida.

Afastaram-se, arfantes. Ele se recompôs, beijou-a na boca levemente agradecida e deixou-a sozinha no escuro.

Era sempre assim que encerravam cada festa. Pouco depois, ele subiu a escadaria e entrou no quarto. Abriu a ducha quente com um ar de dever cumprido. Enrolado na aconchegante toalha conseguiu registrar na mente embatucada a convicção de que nada daquela festa chegaria ao conhecimento dos velhos.

Marizete se encarregaria de apagar todos os vestígios e todas possíveis ideias de delação premiada que passasse pela cabeça de algum dos demais servidores da casa. Deixou-se cair na enorme cama e dormiu aquele que, para seu folgado jeito de levar a vida, era o sono dos justos.


Capítulo 17

O GOZO


Marizete se recompôs e, antes de voltar para a cozinha e juntar-se à equipe de serviço, sem fazer qualquer ruído abriu a janela que dava para o pomar nos fundos da casa e avisou o mulato de aparência rústica, de feições duras e bonitas que dali mesmo, sem se deixar notar, a tudo assistira de camarote:

- Querido, deu tudo certo. Ele não usou camisa de Vênus...
- Tudo bem... – resmungou o voyeur.
- Espera só um pouquinho. Vai pra frente da casa que eu já te encontro lá no portão principal pra gente ir embora – sussurrou carinhosa.

Nem esperou a resposta e foi fechando a janela. Pegou algum material de limpeza que justificasse sua ida à despensa e, abrindo a porta cuidadosamente, certificou-se de que ninguém notava o seu retorno.

Sorrateira, juntou-se à turma do trabalho e, vinte minutos mais tarde, encontrou-se com Marcílio, o seu zeloso e compreensivo marido.

Ela sentou-se no bagageiro da surrada Vespa, motoreca da moda concorrente das cobiçadas Lambretas e, envolvendo com os braços o seu homem, recostou carinhosamente o rosto nas costas dele. No rumo de casa, à meia velocidade, a brisa fria da manhã ficou muito mais gostosa.

Assim que entraram na sala da sua modesta habitação, Marcílio deu-lhe uma sonora bofetada. Marizete quase caiu. Aprumou-se e com a mão sobre face doída, mostrou surpresa:

- Marcílio! Nós não combinamos que eu deixaria ele me comer?
- Combinamos.
- Então, por que isso? Eu trepei com ele.
- Por quê? Você quer saber por quê?!? Porque você não precisava mexer...
- Tá com ciúme...
- Nem mexer, nem gozar. Você gozou, sua vadia!... Gozou!

Ele desferiu-lhe mais dois bofetões. Deitou-a no tapete da sala, arrancou-lhe as vestes e a possuiu de todos os jeitos e em todas as suas apetitosas formas, com violência e paixão.

O amor é assim mesmo. Provoca certa vergonha pelos deslizes cometidos, mas nos conduz à euforia quando a gente se entrega à reparação dos erros. E no fundo, no fundo, Marcílio sabia que a culpa de tudo não estava no sentimento e sim no consentimento.

Tutti Berttucci a essa altura já dormia a sono solto. Há muito tempo.



Capítulo 18

OS MONTES



Nano tinha mais cabeça que os dois irmãos. Por isso mesmo e por primogênito, era o gerente da empresa que, de pequena livraria e uma ativa gráfica e editora se transformara num florescente império industrial.

Tutti e Grazzi eram estudantes mais que recorrentes quase sempre repetentes. Num período letivo passavam bem, noutro ficavam para segunda época. O prestígio da família facilitava sua promoção para o ano seguinte.

Para todos os efeitos e para quem pudesse notar, Nano, já formado em Direito, poliglota – dominava italiano, francês e espanhol – não concordava com a maioria das traquinices dos manos, mas passava a mão por cima. Gostava deles. E, na pior das hipóteses, em casos extremos, tinha em cada um dos irmãos um bom alvo para atirar a culpa.

Não gostava nada era do risco de perder a confiança dos pais, por permitir a realização daquelas festas na sua ausência.

Achava que, a qualquer dado momento, aquela ostensiva dolce vita poderia atrapalhar a imagem da família.

Sempre dava, no entanto, um jeito para que a gandaia não chegasse aos olhos e ouvidos dos velhos. Acobertava o desvario dos irmãos.

Até porque, não raro, a melhor fatia do bolo ficava para ele, ponto referencial dos desejos dos brotinhos mais atrevidos daquela jovem corte. A conveniência justificava a conivência.

Bonito, talentoso, moderno, elegante, jovem, rico, Nano era tido e havido como um bom-partido. Era um pão.

Seu charme natural era reforçado pelas constantes viagens de “estudo e qualificação profissional” à Europa, coisa rara e possível tão somente aos de classe muito alta, naqueles velhos bons tempos em que o mundo ainda ficava distante de onde as pessoas comuns se encontravam.

E assim, com aura de encantador dos melhores exemplares do serpentário social, namorava quem bem queria, quem bem lhe desse na telha, até aquelas que já tinham namorado, ou marido.

Sentia um enorme prazer em roubar a mulher de alguém. Não mais do que por um ou dois dias. Um fim de semana, no máximo.

Depois, espalhava. Contava tudo. Adorava sentir o arrepio de ser interpelado por um namorado ciumento, por um marido traído.

Confiava nos seus argumentos, na sua lábia. E naquilo que tão cedo descobriu e que só muito depois virou moda no Brasil: o que acontece não aconteceu, até prova em contrário.

Nas divertidas rodas de bridge que dividia com as sistemáticas paradas de pôquer no clube mais elegante e discriminatório da cidade, Nano mostrava seu lado perverso de sedutor irresistível.

Toda vez que havia um parceiro novo na mesa apresentava-lhe sua cigarreira de prata, como se oferecesse algo. O agraciado, invariavelmente, se espantava:

- Mas, isso não é cigarro. O que é isso?...
- Pentelhos, meu chapa. Pentelhos de Marina, da Rosinha, da Leonor...

E liberava o seu riso mais irônico, acompanhado na gozação pelos companheiros de sempre daquelas rodadas de jogatina social.

Nano tinha mania de apresentar assim, sem qualquer nobreza, sua peculiar coleção de pelos pubianos arrancados com carinho e maestria das fortuitas companheiras de alcova.

Sabia como lhes dar prazer com aquele jeitinho meio selvagem de lhes oferecer a magia de uma doce e aguda sensualidade.

Tinha de tudo: loiros, morenos, encaracolados, lisos, rebeldes. Era ali, naquela brincadeira exibicionista que sua imunidade poderia correr algum risco. Coisa pouco provável, já que naquele tempo ninguém nem de longe sonhava com a fria precisão que hoje tem um exame de DNA.

Nano jamais revelou o segredo e nem o local do cofre em que guardava a estranha seleção de cabelos da fronteiriça pélvis. Era o que chamava de sua “Coleção dos Montes de Vênus”.

Nano, o Colecionador – apesar de preservar na empresa uma aparência sóbria e recatada – no convívio com sua turma, não era flor que se cheirasse quando o assunto era beijo e abraço. Exercitava com negligente soberba a têmpera itálica que corria em suas veias.

Mantinha com naturalidade os maneirismos nobres, adquiridos no convívio com a nata social que ajudava a ter cada vez mais consistência. Com mulheres, bebia pouco; comia muitas.

Era o seu regime preferido. Nem chegava a ser uma dieta; mesmo quando ultrapassava os limites da elegância, aquelas comidas que tanto comia não o engordavam. Ao contrário, retemperavam sua forma física.

Era um bon vivent: encantadoramente cínico defendia o que ele dizia ser a sua síntese na arte da convivência social:

- A arrogância da alma é o atributo das pessoas honradas; a arrogância das maneiras é própria dos imbecis. Por isso, pareça ser sempre gentil. Não custa nada.

Até nisso, Nano era dissimulado. Vivia repetindo essa ideia, como se dele fosse e não pertencesse, em verdade, ao moralista francês Charles Pinot Duclos, que ele conhecera num balaio de livros antigos postos em liquidação na livraria e de quem surrupiara o fundamento filosófico.

Sempre que podia, ele deixava transparecer descuidadamente seu talento e sua cultura. Alimentava seu ego; impressionava meio mundo. 


Capítulo 19

ROSAS, CASTIÇAIS e CÔNGRIO


A temporada de festa se encerrou naquele fim de semana. Grazziella perdeu o ânimo com o episódio do flagrante misterioso; Nano que no seu jogo de cena não concordava com aquele tipo de uso e abuso da mansão dos pais, não movia uma palha, “para não se incomodar”; Tutti não tinha o mínimo senso de organização, nem liderança bastante para promover festas de arromba.

Dentro delas, arrasava; antes delas, era um mero convidado; do lado de fora, simplesmente era um zero à esquerda, daqueles de causar inveja aos seus próprios boletins escolares.

A vida, pois, voltava ao ritmo normal na segunda-feira. Nano, em plena supervisão geral dos negócios, recebeu um telegrama dos pais anunciando que chegariam de navio, naquela quinta-feira.

Repassou a informação aos irmãos para que reajustassem seu ritmo social: hora de apagar todos os vestígios da farra e preparar o automóvel para esperar os velhos navegadores, lá no buliçoso porto da vizinha Onda do Mar.

Nisso de esconder as pegadas eles eram mestres. Na quarta-feira à noite, tudo estava como se nunca dantes tivesse sido tocado. Um lar sem jaça, sem máculas.

A recepção, no cais do porto, preparada pelos filhos foi simples e afetuosa. Grazzi deu, em nome do trio, um buquê de rosas brancas para dona Helena. Nando e Tutti se apressaram a abraçar o pai, beijar a mãe e logo se dedicaram à tarefa de cuidar das malas e bagagens.

No trajeto de volta para Realeza do Sul, botaram as conversas em dia, trocaram pequenos presentes e acertaram rápidos detalhes para o jantar em família. Chegaram em casa por volta das três horas da tarde.

Às oito da noite, havia champanhe e beluga sobre uma das quatro mesas retangulares do salão de jantar. Os pais e os três filhos ocupavam seus lugares de forma que todos pudessem olhar uns nos olhos dos outros, por entre buquês de rosas brancas, imponentes castiçais de prata, talheres Wolf-90 e taças gregas de cristal.

O congrio rosa à milanesa com molho de camarão foi só a entrada para sinalizar que os donos da casa estavam de volta e que amanhã era outro dia. E, entre boas novas e risos, trataram de planejar o retorno às lidas da vida.

Por entre uma garfada e outra, nada demais. Apenas cuidaram de repassar os dados para o reinício das atividades cotidianas de cada um a partir dali – que a vida é pra valer, tem pressa e não pode esperar.

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