sábado, 19 de maio de 2012

Capítulo 20
ROSAS, CASTIÇAIS e CÔNGRIO


A temporada de festa se encerrou naquele fim de semana. Grazziella perdeu o ânimo com o episódio do flagrante misterioso; Nano que no seu jogo de cena não concordava com aquele tipo de uso e abuso da mansão dos pais, não movia uma palha, “para não se incomodar”; Tutti não tinha o mínimo senso de organização, nem liderança bastante para promover festas de arromba.

Dentro delas, arrasava; antes delas, era um mero convidado; do lado de fora, simplesmente era um zero à esquerda, daqueles de causar inveja aos seus próprios boletins escolares.

A vida, pois, voltava ao ritmo normal na segunda-feira. Nano, em plena supervisão geral dos negócios, recebeu um telegrama dos pais anunciando que chegariam de navio, naquela quinta-feira.

Repassou a informação aos irmãos para que reajustassem seu ritmo social: hora de apagar todos os vestígios da farra e preparar o automóvel para esperar os velhos navegadores, lá no buliçoso porto da vizinha Onda do Mar.

Nisso de esconder as pegadas eles eram mestres. Na quarta-feira à noite, tudo estava como se nunca dantes tivesse sido tocado. Um lar sem jaça, sem máculas.

A recepção, no cais do porto, preparada pelos filhos foi simples e afetuosa. Grazzi deu, em nome do trio, um buquê de rosas brancas para dona Helena. Nando e Tutti se apressaram a abraçar o pai, beijar a mãe e logo se dedicaram à tarefa de cuidar das malas e bagagens.

No trajeto de volta para Realeza do Sul, botaram as conversas em dia, trocaram pequenos presentes e acertaram rápidos detalhes para o jantar em família. Chegaram em casa por volta das três horas da tarde.

Às oito da noite, havia champanhe e beluga sobre uma das quatro mesas retangulares do salão de jantar. Os pais e os três filhos ocupavam seus lugares de forma que todos pudessem olhar uns nos olhos dos outros, por entre buquês de rosas brancas, imponentes castiçais de prata, talheres Wolf-90 e taças gregas de cristal.

O congrio rosa à milanesa com molho de camarão foi só a entrada para sinalizar que os donos da casa estavam de volta e que amanhã era outro dia. E, entre boas novas e risos, trataram de planejar o retorno às lidas da vida.

Por entre uma garfada e outra, nada demais. Apenas cuidaram de repassar os dados para o reinício das atividades cotidianas de cada um a partir dali – que a vida é pra valer; tem pressa e não pode esperar.


Capítulo 21
CURRÍCULO ESCOLAR




Tutti e Grazzi voltaram as suas respectivas escolas. Ele fazia o terceiro ano do curso Clássico e já se encaminhava para o vestibular para a faculdade de odontologia, um razoável ponto de referência profissional para quem, como Tutti, não tinha nenhuma vocação definida.

Ela estava no último ano ginasial no consagrado colégio Santa Bárbara e São Jerônimo. Pensava em fazer o Clássico também, já que detestava matemática e qualquer matéria científica.

Longe dela química, física, biologia, esses monstrengos do ensino. Entrar no Curso Normal, nem pensar. Ser professora normalista era coisa de pobre; nada mais plebeu.

Ao correr do tempo, suas carreiras estudantis foram se concretizando. E o que se sabe é que as coisas fluíram no compasso de suas próprias personalidades; de seus peculiares traços de caráter forjados à margem da moral da admirável marginália: ética é ótica. Aquele tipo de moral ilusória em que uns são mais iguais do que os iguais.

Grazziella não ia bem das pernas naquele último ano de ginásio. Defendia-se no português, ia mal em história e era péssima em geografia. Matemática, então, era de matar. Sentiu que ia rodar feio, não seria aprovada.

Foi até o gabinete da irmã Ruth, madre superiora, uma circunspeta madona. O encontro foi demorado, cheio de mesuras no começo; depois, repleto de veneno e insinuante charme da bonita aluna.

À saída, na troca de um prolongado e afetuoso abraço, o beijo de até-breve foi um leve, quase ocasional e delicado roçar de lábios que começou pelo canto das bocas e terminou num inesperado, longo e consentido encontro de línguas. Nisso, Grazzi sempre ia bem das pernas.

Não se vá pensar que tudo tenha sido amor ao primeiro idioma. Há muito que Grazzi, já prevendo as naturais necessidades de quem, como ela, não se ligava nas aulas nem nas tarefas de casa, preparava o caminho a percorrer nas malhas da venerável freira.

Trocavam olhares quase inocentes e toques quase casuais pelos corredores do colégio, pelas naves da capela, pelos vestiários do educandário em dia de ginástica.

Grazzi mexia com os mais recônditos sentimentos daquela noiva de Cristo. Elas falavam as mesmas línguas.

Durante seis meses teve aulas particulares, nos sóbrios e aconchegantes aposentos da madre superiora. Coisa tipo assim, por baixo dos panos. Sob o manto protetor da desenfreirada paixão da diretora-geral.

Grazziella concluiu o ginásio com louvor e passou para o Clássico no mesmo e tradicional colégio Santa Bárbara e São Jerônimo, como uma das alunas mais bem classificadas da turma. Fez por merecer.

No fim do ano, a diretora foi transferida para a unidade educacional da mesma Ordem, numa outra cidade, de outro estado. Uma surpreendente, uma inesperada decisão da presidência da entidade mantenedora da escola.

Ninguém sabia de onde teriam chegado à coordenação-geral da Fundação Coração da Virgem, mantenedora do colégio, as cartas anônimas que falavam do romance proibido, notório reforço aos conhecimentos da bela garota.

Nenhuma linha fazia qualquer referência ao fato de que Grazziela há bom tempo, tinha prévio conhecimento do conteúdo de quase todas as provas do curso que concluíra com louvor.

A gravidade do peso postal desencadeou uma onda de boatos que inundou os corredores da escola e afundou a estatura moral da freira.

O clima evoluiu para uma tormenta de fortes chuvas e trovoadas. A tormenta acabou desabando em forma de transferência irrevogável da competente madre superiora, usuária de humildes sandálias 44 e de hábitos nem tão castos quanto preconiza a Santa Madre Igreja.

Só se poderia saber mais a respeito, no dia em que alguém ousasse perguntar à própria Grazziella que fundo de verdade teriam aquelas denúncias.

Na verdade, Grazzi tinha outra por dentro: foram suas próprias cartas anônimas que entregaram e descartaram a freira já tida, então, como dama fora do baralho naquele jogo religiosamente cheio de blefes.

Calculista, Grazzi não tocava com as colegas no assunto da transferência da madre superiora. Para ela, era como se nada tivesse acontecido.

Simples aluna, não tinha nada que se meter em assuntos da direção da escola. Ninguém sabia nada sobre a autoria das cartas. Grazzi estava acima de qualquer suspeita, afinal, era uma das atingidas pela covardia do anonimato.

O consenso era de que tudo não passava de calúnia, fruto de inveja e ambição de alguma outra religiosa pelo cargo da diretora. Essa ideia cresceu de tal maneira que a nova freira-superintendente veio de outra cidade.

Foi preciso pouco tempo para que tudo voltasse à monotonia da vida na escola. Restava o jogo de assédio à distância das alunas a alguns dos poucos professores mais jovens do colégio.

Eram poucos os que valiam a pena: o de Ginástica, o de Geografia e o de Inglês. O outro bendito-fruto entre as mulheres era o de Matemática. Já madurão e grisalho, ele ainda guardava uma boa dose de charme.

Como Grazzi era muito bonita e o professor de ginástica também não era de se jogar fora, as meninas pensavam que a relação entre eles ia bem mais além das frequentes trocas de olhares que não se preocupavam em esconder da turma. Ledo engano. O alvo de Grazzi era outro.

Depois de tudo, ela ainda tinha uma secreta dificuldade: as provas de matemática não lhe chegavam às vésperas das sabatinas. Em razão disso, ela já fazia contas e mais contas de cabeça para ver como receberia o diploma no fim do ano.



Capítulo 21
MATEMÁTICO À PROVA





A tarde já cedia lugar à noite quando a prova de matemática terminou. Grazzi não se saíra lá essas coisas. Sua média geral ia de mal a pior.

Precisaria estudar muito para não ser reprovada. Isso a incomodava demais. Sua recuperação na matéria não era apenas uma questão de dedicação integral ao programa, era impossibilidade real já que lhe faltava fundamento básico, pois nunca estudara matemática de verdade.

A sineta anunciou a saída. Grazzi pegou seus livros e dirigiu-se ao ponto onde estacionara o Simca dos seus pais. Chovia miúdo. Arrancou vagarosamente.

Acionou os limpadores de para-brisa e, ao levantar a cabeça seu olhar bateu na figura do professor de matemática na calçada, bem ao seu lado direito.

O cinquentão andava a passos largos, tentando proteger-se da chuva com a pasta sobre a cabeça grisalha. Grazzi não perdeu tempo:

- Ei, professor Célio!
- Oi, Grazzi.
- Quer carona? Entre, eu levo o senhor...

O mestre não hesitou. Aquele chuvisco estava incomodando mesmo. A carona vinha bem a calhar. Ele morava num bairro distante dali e o diabo é que ainda tinha pela frente uma centena de provas a corrigir para o dia seguinte.

-Pra onde você vai agora, Grazzi?
-Pra onde a vida me levar. Pra onde o senhor quiser – respondeu com voz doce e insinuante.
- Moro longe daqui, vou desviá-la do seu caminho.
-O senhor vai me desencaminhar?!?
-Quié isso... – sorriu encabulado o professor, assim como quem consentia.                                                                                                                           
Grazzi, depois de trocar a marcha do carro, pousou carinhosa e atrevidamente a mão direita na coxa esquerda do matemático, um homem de feições bonitas, másculas e – como Grazzi o enxergava – de belos cabelos mofados.

Ele, com um leve sinal de constrangimento, alisava a aliança com os dedos, em movimentos de vaivém, como se quisesse esquecer que ela estava ali na sua mão esquerda. O Simca atravessou a cidade molhada de ponta a ponta.

Manhã seguinte, na sala de aula, todas se preparavam para o anúncio da avaliação de desempenho no duro teste de matemática. O professor Célio pegou-as de surpresa:

-Desculpe, gente. Houve um contratempo. Ontem não tive tempo de corrigir as provas. Prometo que amanhã, todas saberão suas notas.

Era a primeira vez, em muitos anos que o professor Célio, o maior CDF da escola,  atrasava a correção de provas e o anúncio das notas. A turma estranhou, mas deixou por isso mesmo. Algo de muito importante deveria ter acontecido com ele.

O mais instigante de tudo, no entanto, foi que cinco dias depois, a aula inteira ficou sabendo que não havia reprovação nenhuma. Todas passaram em matemática.




Capítulo 22
TRANSFIGURAÇÃO




Daquele dia em diante, Grazzi jamais foi reprovada em matemática. O professor é que nunca mais foi o mesmo cudeferro.

Atrasava a entrega de notas; faltava com frequência às aulas de segunda-feira – dias em que, casualmente, Grazzi também não aparecia no colégio; não dizia coisa com coisa nas reuniões do conselho de docentes; ficou alheio e à toa na vida do colégio.

Já com média suficiente para ser aprovada e sem qualquer chance de reprovação no fim do ano, Grazzi esfriou a relação. Os encontros entre eles foram se espaçando, até que estancaram definitivamente. Célio então ficou caindo de maduro para todas as classes.

Seu comportamento, em sala de aula, passou a revelar certa dose de assédio às alunas mais bem dotadas.

Suas mãos ficaram mais curiosas, vagueavam espertas pelas costas e pelos braços das meninas já grandotas e bem nutridas.

As feias que o perdoassem, mas estudar era preciso; as bonitas eram aprovadas de cara, com distinção. E graça.

Um dia, chegou à direção do educandário, a denúncia do pai de uma feia. Ele recebera em casa uma carta apócrifa contando que o professor de matemática andava usando e abusando da autoridade docente para ser indecente com a filha dele.

Pela carta, o mestre andava tentando ensinar mais do que devia à sua menina, uma adolescente virgem, pura e desprevenida para esse tipo de matéria.

Pego pelo pé, o professor Célio foi demitido do colégio. Uma injustiça: ele só assediava as bonitas! De qualquer forma, ele nunca mais conseguiu ser contratado por outro educandário na cidade.

Teve que dar aulas em Onda do Mar, para onde ia e vinha de ônibus duas vezes por semana. Nesse meio tempo, o casamento de 18 anos foi desfeito. De fato, não de direito.

Célio decidiu, então, dar aulas particulares. E assim o fez, até que alugou um prédio assobradado no centro da cidade e acabou se transformando no precursor dos donos de cursinhos preparatórios em Realeza do Sul.

Voltou aos seus bons tempos de assédio às estudantes bem dotadas.

Quando Grazzi quis se inscrever em seu curso para ver se garantia o vestibular, o misto de mestre e fanchão vingativo mandou dizer que já não havia nenhuma vaga disponível.

Algumas noites depois, teve que entrar às pressas em um táxi, porque um grupo de filhinhos de papai começou a hostilizá-lo, chamando-o para briga, sem qualquer motivo aparente.

Sobreviveu bom tempo em sobressalto, até que aparentemente e por algum tempo os ódios e rancores se aplacaram. Mas no declive da sua vida, o buraco era mais embaixo.

O professor Célio estava sendo investigado pela Polícia Federal, suspeito de vender diplomas universitários, quando sofreu um infarto fulminante em plena sala de aula.


Sua ex-mulher pediu que fosse feita necropsia. O laudo revelou morte por overdose. Ela herdou o emergente negócio do ex-marido. Só o negócio. As relações perigosas, não.



Capítulo 24

10 ANOS EM 10 MINUTOS



Naquela sexta-feira, primeiro dia de retomada do expediente, já em sua escrivaninha do escritório central da editora, dom Fernando Berttucci tratava cuidadosamente da correspondência, um pouco mais volumosa do que a costumeira, em razão daquele recente período de férias.

Um envelope amarelo chamou sua atenção. Era nominal. Direto para ele. Escrito em letras recortadas de revistas e jornais. Não tinha endereço de remetente. Abriu-o com uma espátula de ouro, presente de um dos fornecedores de sua editora.

Ele não estava preparado para o que viu. Levou um choque. Suas pernas vacilaram. Sentou-se na poltrona de couro de espaldar alto.

Lívido, certificando-se de que não havia ninguém por perto, gravou na retina aquela cena dantesca que fez pesar na sua história de vida digna astuciosamente construída; uma trajetória que lhe garantia o respeitável epíteto de Dom, como cai e faz bem aos dignitários oriundi; fez estremecer o imaculado mundo que construíra em torno de si mesmo. E tudo pesou horrível, dolorosamente, sobre seus ombros.

Lá estava sua menina meiga e bonita, no papel da mais reles das decaídas: nua, escarrapachada e entregue às bordas de uma luxuosa cama, fazendo sexo oral num varão de enormes dimensões, sem rosto aparente.

Observou os detalhes: era uma cama de fábrica, marca Patente, selo azul. A sua cama! Reconheceu o abajur e os lençóis de percal. Era Graziella, sim. Era a sua Grazzi e um falo de meia liberdade, já que metade dele se via cativo dos lábios que denunciavam o prazer no resto de rosto da sua filha, naquele quadro aterrador.

Envelheceu dez anos em dez minutos. O velho coração entrou em descompasso. Teve forças para abrir a gaveta e, ao tempo em que se preparava para esconder o envelope, chamou a servente.

Pedia-lhe um copo d’água quando deparou com um bilhete preso por um clipe ao verso da fotografia. As letras eram as mesmas da encomenda apócrifa: “Há mais retratos iguais. Aguarde”.

Com a raiva que o mundo lhe permitia, cravou a espátula dourada no meio do bilhete fixando-o no tampo de sua mesa de trabalho. Como se o gesto tivesse lhe devolvido a respiração, desgrudou o envelope e, com um suspiro saído das profundezas de sua ira, colocou-o no cofre que fechou a sete chaves.

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