sábado, 19 de maio de 2012

Capítulo 25

GUERRA


Dom Fernando não fez o que seu coração mandava. Não teve a síncope anunciada pelo suor frio que lavou seu corpo, nem jogou aquela sujeira na lata de lixo; simplesmente guardou-a no fundo falso do cofre exclusivo de seu gabinete. A partir daí, a dor que cabia nas taças do seu champanhe cotidiano não era pela expectativa da chantagem; era pelo desencanto e pela dura verdade da morte moral de sua filha.

Não era de levar desaforo para casa. Não levou. Nada disse a ninguém. Nem mesmo para Helena, sua mulher. Não lhe repassaria tamanho desgosto. Socorria-se bebendo mais Old Parr do que Don Pérrignon.

Como cabia sempre um pouco mais de autocomiseração em cada dose, foi à cata de alguma coisa mais seca, mais concreta, algo mais real que lhe restituísse o ânimo e a força que perdera e que o malte não lhe devolveria.

Não tinha com quem dividir aquela carga pesada. Desde que se tornara o único dono da livraria e a solidificara como Novo Mundo que ele não tinha mais amigos na empresa. Eram todos funcionários; nada mais que isso. Recebiam o que a lei determinava, sem atrasos e sem qualquer vantagem também.

Tratava a todos com mão de ferro e coração de pedra. Não aceitava atestados médicos, não perdoava falta alguma. Ninguém tinha acesso às finanças; o caixa era conferido diariamente por ele mesmo. A escrivaninha do guarda-livros era ao lado da sua.

À testa do seu negócio era, sem se aperceber, um Benito Mussolini, sem os arroubos oratórios do déspota que, em 1922, desfechou a famosa marcha sobre Roma. Não era por nada que Bertucci usava apenas camisas negras, no dia-a-dia da livraria.

No meio de suas dores de pai em desencanto, encontrou Cervantes num trecho do abstrato Dom Quixote: “Os filhos, senhor, são pedaços das entranhas de seus pais e, assim, se há de querer o bem e o mal que sejam como querem as almas que nos dão vida...”.



Capítulo 26

GATAS E RATOS



A vidinha na cidade continuava a mesma. Anos dourados: cada fim de tarde, um grupo ia para a Taberna De Pandora, na Rua das Flores, ao lado do Bazar's Freddy Song – A Voz do Dono. A pedida era infalível: chopinho bem tirado, de colarinho maduro e sanduíche aberto, com a mostarda de sabor secreto, de fazer chorar de prazer.

Outra turma, mais madura e de colarinho impecável, ia para as mesas do restaurante Acrópole, já com segundas intenções: jantar de verdade. Era a culinária que usava azeite de oliveiras atenienses e fazia o arroz à grega mais requintado da cidade.

Velhos e moços pareciam só pensar naquilo: comer e beber e comer. Ninguém era capaz de igualar o filé a cavalo que galopava pelas pratarias do Van Gogh’ Restaurant, no coração da Avenida Farroupilha, entre a Alameda Colorado e o Beco dos Maragatos.

Já o mocotó do Mercado Municipal só tinha rival na morcilha, apelido da morcela, do chouriço com farinha, sal, pimenta malagueta, ao sabor de um copo de vinho tinto, safra tosca de Emílio Ribas, da Zona Rural, a chamada Colônia das paragens gaúchas.

O vinho era também fiel e devotado acompanhante do suculento caldo de boi. Tão limpo e tão confiável que, se o freguês – por malfadada sina - encontrasse um fio de cabelo no prato, ganhava um pente como brinde. Sem sorteio, sem nada. E sem trocar o prato.

E tinha também o colchão-alemão, do bar meio pub, meio restaurante, Habeas Copus. O conhaque flambado era o show da vida, naquelas frias eras dos invernos sessentões.

Na Fruteira Nacional, os transviados se aglomeravam nas jovens tardes de domingo à espera dos fins das matinês do cine Parthenon. Ficavam tomando Marumby-Ouro em copo alto, dedilhando três pedrinhas de gelo, como se fosse uísque – bebida inatingível para a maioria daquelas mesadas ali.

Outros, pelo temperamento pirata, preferiam Cuba-libre. Todos gostavam dos brotinhos, das menininhas algariadas que desfilavam pra lá e pra cá, ao som de piadinhas à moda galanteio.

Homens feitos e suas donas; gatões e gatinhas; pães e brotinhos reservavam suas melhores horas das manhãs de sábado para desfilar pela Rua das Flores.
 
Era ali que se concentravam algumas das melhores casas de diversos ramos: ninguém conhecia melhor empadinha folhada de camarão com azeitona, do que aquela da Confeitaria Aquarela do Brasil; todos queriam os doces portugueses da Confeitaria Mangueira; o caldo de frutas da Fruteira e o sorvetão da Butterfly eram imbatíveis.

Agora, gostoso de verdade, era comer chouriço, provando uma cachacinha com vermute, nas mesinhas do Mercado Municipal, um pouco mais pra lá do fervo da rua principal.

Tudo, no fundo, era apenas um divertido jogo de gatas e ratos. Umas corriam atrás dos outros das outras; outros corriam atrás das outras dos outros.

Pois, nesse roteiro de divagações, Dom Fernando Berttucci foi levando a vida. Comia pelas beiradas. A cada momento, em cada lugar, espreitava sem deixar-se denunciar. Talvez um movimento, um olhar, um gesto, um tique nervoso, lhe revelasse o cão raivoso, o canalha que o atormentava. Era o jeito de encobrir seu mundo em desencanto.

Resolvera também nada falar do que sabia para a própria Grazziella. Escolheu não perder a filha. Jurou que teria tempo, alma, coração e vida para lhe dar o maior e melhor amor possível. E tolerância bastante, quem sabe até o quanto bastasse, para produzir-lhe felicidade.

Trancafiado em si mesmo, iniciava uma guerra surda e muda contra a canalhice de um chantagista desconhecido. O seu maior escudo era o perdão calado que oferecia à sua menina Grazzi.

Sua armadura, porém, era cravejada de pontos frágeis. Realeza do Sul era uma cidade que não conhecia a grandeza do perdão. Uma sociedade calhorda que não admitia deslize às escâncaras. Errar, qualquer um podia; deixar-se descobrir, jamais.

Era o império da errônea verdade de uma cretinice consagrada: “Vergonha é roubar e não poder carregar”.

O silêncio, pois, era a pedra fundamental de sua muralha intransponível. Mesmo que tivesse que pagar os canos americanos, tudo que fosse possível e o diabo-a-quatro para sair daquela situação.

Não tinha mesmo a quem contar sua desdita sem correr o risco de ser traído. Valeu-se da malandra sapiência de Kung Fu Tse, o Confúcio: “O silêncio é um grande amigo que nunca nos atraiçoa”.

Logo estava já se completando uma semana que recebera o mais contundente choque de sua vida. Ruminava a angústia do vulcão em que se transformara o seu espírito pela expectativa do seu primeiro contato com o demônio.



Capítulo 27

DOS PORTÕES AO QUARTEL



A cidade seguia seu curso; seus rumos, sua vida. As patotas deixavam de lado as diferenças e trocavam figurinhas sobre festas de aniversários, brincadeiras dançantes, clubes de dança que realizavam os famosos bailes "pra fora", empregadinhas que, à hora crepuscular, se deixavam coxar nos portões residenciais, gurias namoradeiras, dadivosas e bem vassouras, daquelas que "varriam" os salões à cata de bons pares.

Aniversário de 15 anos era tiro e queda: dava festa de arromba. Da birita ao pito era um pulo. Saratoga não dizia nada; Colúmbia ou Minister era outro papo. Melhores que Holywood, Continental, Mistura Fina. Uma brasa, mora.

Do cigarro à cannabis sativa e, da boleta ao cheiro, foi só o primeiro passo em falso na grande marcha para o nada. A cidade parecia crescer. Já padecia da maldição dos três pós-brancos: sal, açúcar e cocaína.

Daí é que começaram a decolar os vaposeiros, os aviões das primeiras horas. Era tempo e vez de sexo, droga e rock’n roll. E até compulsoriamente, salvo horrorosas exceções, os garotos tinham que prestar tempo de serviço às fileiras do Exército Nacional. A vida do cidadão de amanhã passava, mais ou menos, por ali.

O Quartel recrutava, por ano, cerca de 2 mil pirralhos alienados que se alojavam, como se soldados fossem, em dois batalhões e algumas companhias de comando. Ali, eles deixavam de ser criança pouco antes de completarem 18 anos e brincavam de ser homem.

O tempo de Exército era uma usina de gerar amigos e influenciar pessoas. O expediente era curto. Cinco da tarde estavam todos no olho da rua, já trocando a farda por suas roupas iradas de almofadinhas.

Chegou a vez de Nano. Não escapou do exame de seleção. De nada adiantou ser universitário e nem alegar que trabalhava na empresa do pai.

Quase deu o velho golpe da mancha no pulmão. Bastaria ter engolido um chumaço de algodão e tirar logo uma radiografia dos “foles”. Ia parecer tuberculoso, credo. Mas, até ele achou que aquilo era demais. Foi ao processo seletivo. Virou recruta.

O pessoal do Quartel conhecia bem a geração-faculdade e isso só serviu para que fosse parar numa Companhia de Comando.

Uma daquelas em que se faz muito pouco, ou quase nada de ordem-unida, marchas, contramarchas, treinamentos de combate e coisas do gênero que ministravam a um contingente de meninos que, apesar do sapato mocassim e topete com gomalina, mal sabiam se limpar.

Nano cumpriu seu tempo de serviço antes de estourar a Revolução de 64 que, apesar de deter por algum tempo nas cadeias do Quartel um grande número de ditos subversivos, só teve de verdade mesmo uma vítima lá por aquelas paragens: foi um cara metido a comunista.

Ele estava mais para intelectual de esquerda do que para valente de fato e de direita. Vivia urdindo planos mirabolantes contra o status quo.

Quando estourou a revolução, ele estava no quarto engendrando mais um grande contragolpe às insuportáveis pressões da direita burguesa: donos de cinema estavam querendo acabar com a meia-entrada para estudantes; os proprietários das empresas de transporte manobravam contra a passagem gratuita. Isso ele não podia admitir.

Mergulhado em suas elucubrações, foi atingido por aquele barulho ensurdecedor. Alguém, muito próximo dali, tinha dado um tiro.

Tomado de surpresa e de enorme susto, jogou-se tremendo de pavor, para baixo da cama.

- Pronto! A direita me descobriu. Tô frito! - condenou-se borrado de medo.

Azarado, mal acabou seu voo de galinha bateu com a cabeça no urinol e abriu um talho na testa. Correu para a calçada em busca de uma condução que o levasse ao pronto-socorro. Vinha passando, naquele exato momento, uma viatura do Exército recolhendo transeuntes suspeitos de subverter a Redentora.

Carregaram com ele. Pobre rebelde - levou na testa cinco pontos na enfermaria do Exército. Pouco depois estava solto. Durante anos, exibia para todo mundo a cicatriz que ganhara no exercício pleno de suas ideias revolucionárias. Hoje, é portador de bolsa-anistia.

Por conta da invencionice bem urdida, um desses reitores pós-Arena, consagrados pelos governos democráticos que seguem nos escorchando com a mesma tirania, arranjou-lhe um bom emprego na Fundação Universidade Federal do Cone Sul.

Ele próprio, por nadinha, não foi reitor. É isso, reitor mesmo. Bem assim, como esses que não fazem vestibular para chegar às reitorias. Vive ele agora por aí, flanando à custa da gorda aposentadoria, falando mal de Deus e todo mundo.

Isso tudo aconteceu quase seis anos depois do tempo de caserna que Nando tirou compulsoriamente. Um tempo insosso; um tempo pirão-sem-sal. De não fazer quase nada, de apenas brincar de faz de conta que estamos em guerra.


Capítulo 28

CABO DE CASERNA


 
Para menos fazer ainda, o ideal era se inscrever no Curso de Cabo. Pois foi justamente ali que Nano foi parar. O lugar era, na realidade, uma espécie de oásis na árida vida aquartelada.

Aquilo era uma ponte de bons conhecimentos; de boas relações fortuitas e algumas amizades de improviso. Foi ali que Nano conheceu Darlington, um astuto mestre na arte de irradiar simpatia e prontidão, atributos tão escassos quanto úteis naquele juvenil universo militaresco.

Uma das piores coisas naquela obrigatória passagem pelo Quartel era tirar plantão de guarda aos fins de semana. Era dose pra mamute posar de sentinela, com um mosquetão Mauser, respeitado instrumento bélico, sobra da 2ª Grande Guerra.

Aos poucos, os topetudos descobriram que a soldadesca era formada muito mais por pessoas de classe baixa do que pelo contingente englostorado da geração hyght fidelity.

O batalhão mais numeroso era formado justamente por aqueles que ficavam um grau abaixo até dos remediados que, mesmo sem berço de ouro, eram figuras que pelo menos tinham onde cair mortas.

Daí a negociar troca de plantão, prática permitida pelos comandos das

Companhias dos dois Batalhões foi um tapa. Os bonitinhos viram que os recrutas de bairro e da colônia, não só gostavam como precisavam “vender” seus serviços. Cobravam boas mesadas por isso.

Os militares graduados ignoravam esse tipo de troca-troca. Para eles era só um sinal de camaradagem, de espírito de corpo da tropa. Para os recrutas descamisados e pés-descalços valia mais que o dobro do soldo.

Darlington, cabo feito a machado, cabo de caserna, estava lá para isso mesmo e tudo mais que se possa imaginar, até e fundamentalmente intermediar o toma lá, dá cá. Era o melhor agente de permutas de serviço.

Foi então que Nano se aproximou de Darlington. Soube, por milicos antigos, que ele era o caminho mais curto e mais fácil para livrar o pessoal da cidade dos plantões de fim de semana.

Tratou de entrar em contato com ele. Numa hora de folga, entre a ordem-unida e o rango, chegou-se a Darlington que circulava pelas calçadas estreitas do refeitório de caserna:

- Ei, você é o Darlington, não? Eu sou...
- E aí, Nano. Sei quem tu é, meu chapinha... – respondeu-lhe, usando o tratamento no dialeto regional para quebrar o gelo e a distância.
- Você me conhece? – perguntou o bom burguês, sem abrir intimidades.
- Sei tudo a teu respeito, carinha. Mexe com os negócios do teu pai, joga tênis e golfe direitinho, mas no duro e na batata tu é mesmo bom é de bola...
- O que é isso, um dossiê?... – Nano quis saber, suavizando o papo.
- Não te espanta. Não sou adivinhão. Sou da turma doTutti, teu mano. A gente sai pras quebradas, de vez em quando...


Capítulo 29

TODAS AS FICHAS


Pronto, a partir daí, tudo ficou mais fácil. Darlington transbordava simpatia e competência; Nano servia-se dos seus pequenos serviços de caserna. De início, adiantava alguma propina “pra repasse aos muçurungos” que não faziam nada no amor e graça.

Depois, a amizade se estreitou e tudo era só uma constante troca de favores. Um ajudava o outro, sempre que necessário e ao devido alcance. Nano, por isso e mais um pouco, não ficou de sentinela uma só vez, durante o ano que passou pelo Exército.

Começou a admirar seu tino. Percebeu que Darlington inflacionava as transações, com tal habilidade que todos – os que pagavam e os que recebiam pelos serviços – ficavam lhe devendo obrigação.

Era um mago nos mistérios de prestar favores e fazer bons negócios. Todos ganhavam; todos se davam bem. Tinha os segredos da alquimia do que, naqueles bons e velhos tempos, se chamava relação amorosa. Engambelava lordes e plebeus com a mesma simpática eficiência. Assobiava e cantava ao mesmo tempo. Tinha um lenço pra cada choro.

Nando, evidentemente, sofria o privilégio de ser filho de quem era. Os comandantes do Quartel eram amigos de clubes de serviço, de pescarias, de festas, de leituras do respeitado acervo do provecto dom Fernando.

Nano padecia no paraíso. Não tirava serviço, não pegava em armas, não entrava na escala de plantões. Preenchia seu calvário de caserna, matando o tempo nas aulas de aspirante a cabo, só observando os movimentos. Armava jogos de tênis, basquete e futebol entre as companhias dos dois batalhões.

Ele percebeu, de imediato, os talentos de Darlington. Desde logo soube que o cara era um jogador. Embaralhava suas cartas como escolhia suas amizades. Conservava os ungidos na mão, enquanto esperava que o servissem para ganhar, qualquer que fosse a parada.

Antecipava-se a todo e qualquer lance. Um jogador de boas paradas. Apostava, sempre na certa, todas as fichas.

Correu o tempo de permanência. Onze meses depois, Nano saiu do Exército com a patente militar de cabo, só para não dizer que tinha sido um simples recruta. Darlington teve que deixar a caserna. Não conseguiu ser promovido a sargento e seu tempo de milico expirou. Já não podia mais ser reengajado. 



Capítulo 30

TALISMÃ


Com a aproximação a Darlington que o curso de cabo proporcionara, Nando resolveu levá-lo para a sociedade. E o introduziu mais como um talismã do que como um amigo de fé. Mais como um troféu de bom valor que ganhara no ameno confronto que entretivera com as classes menos favorecidas da região militar de Realeza do Sul. Um camarada. No bom sentido.

Nando financiou-lhe até um curso de datilografia na eficiente escola Remington, então primeira e única da cidade. A política de relacionamento entre eles era de boa-vizinhança.

No mundinho fora do quartel, de segunda a sexta, a semana inteira, o roteiro da juventude era de caça às bruxas: mal terminavam as aulas nos colégios “só de homens”, os garotos se mandavam para a “saída” das cocadinhas nos colégios femininos: Instituto Machado de Assis, Santo Antônio, Santa Bárbara e São Jerônimo. Todos ligados a congregações religiosas.

Não dá para contar quantos namoros e quantos casamentos saíram dali. Naquele tempo o pessoal casava de verdade. A fauna da EFT - Escola de Formação Técnica era mais chegada à cultura física, ao esporte.

Do futebol ao basquete; do vôlei ao pingue-pongue. Pouco dada a crenças, a rituais de fé e sem nenhuma esperança quanto à boa e velha caridade.

E, em verdade, em verdade, se diga: todos faziam as mesmas coisas. Uns contavam contos e aumentavam pontos; outros comiam quietos. No fundo quem comia a namorada dos outros espalhava. Ninguém queria fazer gol de placa em estádio vazio.

E, porque, tudo e todos eram muito parecidos, a rotina geral era comum a todos. Saber viver era tão importante quanto saber conviver.

Os artistas na arte das relações humanas começaram a aparecer. Cada um na sua, todos na de cada um. Em Realeza, os jovens tinham muito pouco dos usos e costumes da gauchada.

Estavam mais para a rebeldia que dava os primeiros passos a caminho de Woodstock, ou qualquer outra invencionice hippie. Mais arrumadinhos, mais limpinhos que a espantosa flower power generation.
 

Capítulo 31

PEQUENO MECENAS 


Bastardo, sem berço, Darlington foi adotado aos cinco anos de idade, sem papel passado, por um casal de velhos tios pomeranos, legítimos representantes das comunidades eslavo-germânicas da zona rural. O casal há bom tempo havia trocado a vida no campo pela sobrevida na cidade.

Dois ou três anos mais velho do que a maioria dos rebeldes sem causa de Realeza do Sul, mal saído do quartel, ele precisava dar duro para sobreviver.

Trancou matrícula na EFT, onde mais se destacava como atleta de pingue-pongue do que como aluno aplicado, embora seu talento fosse reconhecido por todos. Deixou a escola para se sustentar.

De aprendizado mesmo, lhe restavam apenas duas aulas semanais de máquina de escrever, silenciosamente patrocinadas por Nano e tudo mais que a vida lhe ensinava de graça; tudo que não estava no Gibi. Talvez nem na Bíblia – que nunca abriu.

O cara, no entanto, era privilegiado. Tinha uma cultura de ouvido que rivalizava com as figuras mais eruditas da aldeia; sabedoria de almanaque.

Trabalhava no balcão da Casa do Produtor Rural – loja dos tios que o criavam e que o queriam como se filho fosse. Era um lojão que vendia insumos rurais, ferragens e materiais elétricos.

Era mais que balconista, meio-gerente. Isso lhe dava, no fim de cada mês, um pouco além do que eram as mesadas de muitos filhinhos de papai. Ainda mais que ele sempre afanava algum da gaveta-caixa do movimento diário. Pouca coisa, para que os velhos não fossem capazes de notar; bastante para que tornassem as suas noites bem mais folgadas.

Humor afiado, elétrico, naturalmente gentil com todo mundo, grana controlada no bolso, Darlington tinha sempre bufunfa na mão às ordens de uma rodada de sinuca, de um ou dois lances nas roletas clandestinas da cidade, de um pife de coringa imaginário para a banda jovem dos festivos entardeceres que invadiam as noites urbanas.

Darlington foi entrando sedutoramente na chamada alta-roda. Ele, contudo, não se incorporava ao perfil dos piolhos de rico. Ficava assim, como se estivesse no limbo. Tinha jeito de lorde. Passava por nobre.

Patrocinador costumeiro de pequenas quantias e certos favores para a meninada perdulária, ele ganhou gradativamente o respeito e a confiança de cada um deles. Destrinchando com maestria a ciência de usar e ser usado, passou a agir como um líder natural, uma espécie de guru despretensioso.

Fazia daquilo um teatro. Era um pequeno Mecenas. Sugeria coisas, como quem não quer nada, e eles iam fazendo. Perniciosamente gentil, ia mudando o jeito de viver da camada adolescente na cidade alta.

É impressionante como dois ou três anos fazem diferença nessa faixa dos 15 aos 20 de idade. Tinha mais vida, mais know how do que eles. Mais, muito mais malandragem no corpo. E nada a perder.

 

Capítulo 32

ALMA-GÊMEA



Todo santo dia Darlington cumpria o compromisso de abrir a loja dos seus tutores, no centro comercial da cidade. Saía cedo de casa. Tomava o ônibus que o tirava do populoso e distante bairro em que morava para deixá-lo na porta do emprego. Era uma rotina que ele abominava.

A mesmice passou a ser extremamente agradável desde o dia em que seus olhos encontraram os olhos de uma garota bonita, de pele suave, cabelos à Coco Chanel e de meneios que espalhavam uma sensação de delicada esperteza nos gestos, no jeito de andar. Ela era assim como um estado de espírito em carne e osso.

Sempre de saia justa e blusa, aquela pequena deusa em pessoa carregava nos lábios um permanente sorriso enigmático, quase irônico, meio desafiador.

Darlington soube que ele tomava o ônibus exatamente duas paradas depois do ponto em que ela entrava, não sabia bem se ela sorria dele, ou para ele. Por via das dúvidas, dava-lhe o troco na mesma moeda.

E foi assim, que aquele trajeto compulsório passou a ser, para os dois, a melhor viagem.

De moradores dos mesmos confins de Realeza, de protagonistas dos cotidianos encontros no papel de passageiros do mesmo coletivo que os deixava em seus respectivos empregos, Darlington e Sílvia trocaram os instigantes sorrisos por um riso entreaberto e convidativo.

Deixaram a simples troca de olhares, o mero flerte dos percursos compartilhados, dia após dia, semana após semana, pelo mês afora e partiram daquelas contínuas viagens que ligavam a periferia ao coração agitado das calçadas centrais, para um namoro assumido.

Naquele tempo distante das “ficadas” de hoje, os namoriscos demoravam um pouco para que se transformassem num caso sério. E quando o flerte virou compromisso, ele soube quem era Sílvia.

Ela também não tinha berço. Era bonita e bem falante. Trabalhava no comércio, no Magazine Gicotteghy – uma loja de departamento como poucas na região. Era auxiliar de escritório e fazia o controle do Caixa na empresa.

O gerente, Edoardo Santorini, casado, bonitão, elegante, tinha paixão pelos dotes funcionais e mais ainda pelas virtudes visuais implícitas de Silvia.

Ele avançava pouco o sinal, mantinha prudente distância, pelo devido aparente respeito à própria esposa e por temor à sociedade; ou por medo da primeira e respeito compulsório pela segunda.

Alguns meses depois, Sílvia estava noiva de Darlington, aliança no dedo e tudo mais. Não demorou nada para que se transformasse numa espécie rara de alma-gêmea.

Alma-gêmea apenas, não. Sílvia, gradativamente foi se transformando na versão feminina de Darlignton. Estava sempre com ele. Numa boa. Mesmo que isso significasse o que pudesse haver de pior.

Sílvia tinha seu dinheirinho sempre à mão. Tanto quanto o noivo, ela também, sacava da registradora, em cuidadosos descuidos,  umas que outras notas a mais, para suas vicissitudes de cada dia.

Educada, esperta, delicada, respeitadora atenta, acabou se enturmando com todas as cocotinhas e as melhores dondocas citadinas. Isso se deu graças à convivência explícita de Darlington com a nata social e pelos fortuitos encontros dela mesma com a clientela do magazine. Sílvia logo virou, sem dificuldade, bem mais do que apenas uma nova tigresa em Realeza do Sul.


Capítulo 33

NO BOM SENTIDO

A pouco e pouco Darlington - o Lobo da Moda,  foi puxando os deslumbrados meninos-ricos para a jogatina. Começou pelo tênis de mesa, esporte inocente que dominava com facilidade. Carregou muitos deles para os vários clubes esportivos que, como craque da modalidade, frequentava com relativa assiduidade.

A rede que separava os dois lados da mesa era o ponto de união da patota que, inadvertidamente, assim sem se dar conta, consolidava o espírito de porco de uma nova e descompromissada confraria.

Como, naquela turma de fanáticos por brilhantina, onde um deles metesse o bedelho todos metiam as ventas, logo a alcateia em peso virou especialista em tênis de mesa.

Nas sedes sociais, por detrás dos biombos, corria firme o carteado. Coberto de fumo, salpicado de falsa purpurina. De repente, quando viram, só jogavam pingue-pongue se fosse a valer alguma coisa.

Não demorou nada para que seus uivos se esgueirassem pelos panos verdes do pôquer, no pife-pafe, até no cuspe à distância. Apostavam tudo, de dinheiro a qualquer tipo de mercadoria: relógio, cigarro, caneta, isqueiro, uísque contrabandeado, maconha, boleta, lança-perfume, as calças Lee. As calças deles e das namoradas.

Foram ocupando as casas de carteado mais grosso, dos pifes de bater com a louca, do pôquer pesado. Daí foi um pulo para as mesas da sinuca às ganhas, com a bijuja casadinha na caçapa; depois para a corrida de cavalos.

Dos corcéis partiram para os bingos e para as roletas clandestinas, que a polícia não via. Desde que Darlington sempre pagasse pra ver.

Nunca deixou que nenhum dos seus amigos fosse corrido a ficha de qualquer mesa de jogo. Sempre completava as paradas. Com ele era no duro e na batata! Botava a banca. Até os óculos escuros para os policiais de farol baixo, ele comprava.

Quando a rapaziada se deu conta, estava lhe devendo os tubos. Dinheiro e obrigação. Era fácil levá-los para onde ele queria que fossem.

Silvia fazia o mesmo com os brotinhos da sociedade. Tudo sempre na maciota. Feito assim como se estivessem prestando favores. Deixando todos com a firme convicção de uma sólida corrente de parceria, cujos elos não poderiam ser quebrados.

Para que se entenda o que seria hoje, a tática de montar uma social network com a elite de Realeza atenderia pelo lulático nome de “estratégia de coalizão” – não “pela governabilidade”, como o governo implantou no Brasil, mas “coalizão pela social-cumplicidade”. Bem do feitio que ficou sendo naqueles tempos de greasers de mentirinha, posto que nenhum deles, salvo Darlington e Silvia, era ou queria ser um jovem trabalhador.

Quando se deram conta, já eram uma gangue de rua realense. O seu estilo de vida tornou-se popular entre a juventude que restava, graças ao seu aspecto de rebelião contra modos e costumes. Ditavam a moda da rebeldia.

Darlington tinha fama de ser do bem, de ser da paz. Mas, à boca pequena, comentavam que era bom de soco, brigador malvado, impiedoso. A maioria jurava que ele não batia, rebatia. Ele não dizia que sim, nem que não. Sorria o sorriso de Sílvia.

Sempre que fosse necessário, demonstrava uma firmeza assustadora. Olhava nos olhos e dizia o que queria, sem aumentar o tom da voz. De tal forma que, no mais das vezes, as palavras feriam mais do que o punho.

Quase sempre brincava com os momentos de perigo que ele, ou qualquer dos seus parceiros, estivessem enfrentando. Não deixava ninguém mal.

Certa noite vagabunda, numa dessas sedes clandestinas de clubes esportivos de segunda divisão e quinta categoria, um carpeteiro novo, enorme, gordo, glutão e estourando de sorte, batia todas as grandes paradas.

Nas pequenas rodadas daquele pife de bater com a louca, ele nem ia. Wellington Rice, um dos greasers mais bonitões e afoitos da turma do centro, já estava cansado de sair pifado e de perder todas na primeira ou, quando muito, na segunda volta.

Naquela rodada Rice saiu quase pronto, estava para bater pelo coringa. Bastava mais uma carta para ficar na espera. Estradulou. Isso na língua das cartas quer dizer extrapolar, estridular, ir à parada. Dobrou todas as apostas que se sucediam. Todos na mesa apostavam.

Estava parecendo empulhação. Parecia que todo mundo estava com jogo para bater. Ele seria o terceiro a jogar. Era impossível perder aquela mão. Até que enfim ia tirar o pé do barro.

Feitas as apostas. O que jogava de mão foi ao jogo. Comprou a primeira carta, não gostou e comprou a segunda. Encaixou no seu buquê da sorte e largou a que não prestava em cima da mesa. Wellington ia comprar para aumentar sua chance, quando o mastodonte rabudo abriu o seu leque no pano verde:

- Deu pra mim!
- Quiopariu! Vai ter sorte assim na casa do cacete! – irritou-se Wellington.
- Jogo é jogo, meu. Não chia – vociferou o grandalhão, arrebanhando as fichas.
- Não te agranda, ô corno! Chifrudo! – saiu Wellington dos limites.
 
Gritou e se arrependeu. O animalão levantou da cadeira, cresceu na sua frente e mostrou na cintura um Colt 45 de dar inveja a qualquer Durango Kid.

 - Ô bundão de merda, tu me chamou de corno, de chifrudo?!?

Bateu um silêncio tumular na sala. A coisa ia de mal a pior. Wellington engoliu o pomo de Adão e quase sumiu na cadeira. Ficou do jeito de quem queria comer a toalha da mesa.

Os outros parceiros embranqueceram em efeito dominó: à medida que se olhavam, eles iam perdendo a cor. Deu Omo nos homens, branco total. O dedo no gatilho estava enbranquecendo. Só faltava o estampido. E foi então que, à margem da mesa, a voz de Darlington, se fez ouvir calma e serena desanuviando o ambiente:

- Ei, ei amigo... Ele te chamou de chifrudo, sim. mas não esquenta...
- O quê... – o possante já ia topando briga geral.
- Ô amigão, foi chifrudo sim... Mas chifrudo no bom sentido, cara.

O sorriso simpático do "mirolho" e o tom conciliador da sua ridícula explicação desarmaram até o grandão ofendido. Aos poucos, a mesa estava cercada de risos amarelos. Wellington foi crescendo no seu lugar, enquanto o sortudo tentava resolver se aceitava aquilo como desculpa ou como brincadeira. Sentou-se. Aí, Wellington deu sinal de vida:

- É sim, chifrudo... Mas no bom sentido – arriscou-se a murmurar conciliador.
- Ah, bom. Se foi no bom sentido da palavra, tá certo. Vamos pro jogo.

O grupo de Darlington ainda ficou por ali uns quinze minutos e, como a sorte não queria nada com eles, deram os trâmites por findos e foram para a sopa da madrugada no Boteco-24.

Ficou provado uma vez mais: com Darlington por perto, ninguém pagava vale pra ninguém. Só as fichas – que jogo é jogo.



Capítulo 34

A DEMISSÃO
 

Darlington chegou em casa lá pelas quatro da madrugada. Encontrou Sílvia acordada. Fazia palavras cruzadas, uma de suas manias na hora de serenar os ânimos, de baixar o stress.

Aquilo não era um bom sinal. Darlington a beijou de leve, tirou as roupas e foi para o chuveiro. Em minutos voltou para o quarto. Vestia um chambre atoalhado, azul piscina que, ele achava, combinava com a cor da sua pele.

Sentou-se na cama, ao lado de Sílvia e antes de lhe retirar das mãos o coquetel de enigmas e a caneta, ainda brincou:

- Sapo da Amazônia, com três letras?... Aru!

Beijou-a suavemente e quis saber o que se passava. Ela abriu o jogo:

- Vou pra rua do emprego amanhã. Tô ralada, darling.
- Quié isso, meu bem. Começa do princípio, baby - sempre que podiam, ou estavam a sós, exercitavam seu inglês de Yázigi.
- O Dado me botou na prensa – ele detestava quando ela chamava o gerente pelo apelido.
- Sim e daí?
- Daí ele disse que sabia das minhas “batidas” no Caixa.
- E o quê mais?
- Aí, me cantou. Disse que daria um jeito de justificar a falta da grana. Resolveria tudo numa boa, mas eu tinha que sair com ele...

Darlington subiu nas tamancas. Não havia nada pior para o seu ego do que mexerem com o que lhe pertencia. Falta de respeito. Respirou fundo e reagiu:

- Sair com ele... Fiadaputa! E tu, o que foi que tu disse praquele sacana?...
- Peguei minhas coisas e fui saindo. Vou ser demitida amanhã.
- Ah, não vai, não. ‘Xa comigo!
- Não vai fazer escândalo, darling. É melhor...
- Tu sabe que espôrro não é do meu feitio. ‘Xa comigo.
- O que é que eu faço?
- Nada. Fica na tua, numa boa.Tu não vai trabalhar amanhã. Tu tá doente. Eu vou até à loja justificar tua falta. Falo com esse grego direto.

Sílvia sabia quando era fim de papo com Darlington. Levantou-se foi ao banheiro da pequena e confortável suíte. Na volta, o roupão do seu amado já estava na cadeira rococó, ao lado da cama. O quarto estava à meia-luz. Ela tirou a camisola e se aconchegou em seus braços.

De manhã, Darlington tomou café um pouco mais tarde que de costume. Telefonou para a casa dos pais e comunicou que haveria um pequeno atraso. Chegaria um pouco fora de hora no trabalho.

Leu o jornal do dia, escutou um pouco do noticiário de uma rádio de Porto Alegre – que “entrava” muito bem na cidade – tomou um rápido banho, botou calça, camisa e uma jaqueta de couro, vestiu os mocassins à moda Alain Delon no filme policial francês Plein Soleil, pegou seus pezinhos e foi para o Magazine Gigotteghi.

O gerente mal tinha concluído a reunião matinal rotineira com a equipe de chefia quando deu de cara com Darlington que lhe sorria. Era um sorriso desenhado, só de dentes, os olhos tinham uma camada de gelo transparente que endurecia as suas feições joviais.

Santorini aproximou-se afável do moço. Seu jeito tranquilo disfarçava o pressentimento de rolo grosso.

-Ó Darlington, tudo bem?
-Cara me diz aqui: tu quer comer a minha mulher, quer?!? – sibilou.
-Que isso, rapaz. Calma... Venha, vamos até meu escritório.

A melhor saída era levar aquele problema para longe dos olhos e das orelhas aguçadas dos funcionários e da clientela que já começava a chegar aos balcões do movimentado magazine. Colocou o braço em torno dos ombros do jovem, fazendo-o de “freguês” aos olhares da volta, e saíram como bons amigos, em direção ao gabinete da gerência.

Lá, a portas fechadas, conversaram por quase meia hora, livres da curiosidade geral. Quem viu Darlington sair da sala do diretor-gerente se deparou com um rosto jovial de sorriso bonito na cara de quem parecia um sujeito feliz da vida. Darlington saiu dali direto para a loja dos pais. De lá discou para Sílvia.

- Pode sair e fazer umas compras. Hoje tu tá de folga remunerada, meu anjo.
- Folga?
- É, folga. Vai, vai comprar uma jaqueta nova pra mim. Eu mereço.
- Mas...
- Vai e compra um vestido pra ti. Tu mereces, guria bonita. Hoje é sexta-feira. Só vais voltar ao magazine na segunda. Tais de folga amanhã também. Logo à tardinha, me espera de vestidinho novo na Toca do Chope. A gente merece.

Aquele fim de semana foi de arromba. Festa e festa. Deitaram e rolaram pelas bocas mal e benditas de Realeza. Pagaram todas as notas de restaurantes e bares de todas as classes e feitios. Assumiram tudo, para eles e para os agregados de sempre, seis ou sete endiabrados espécimes da elite realense e dois ou três conhecidos, lá da vizinha Onda do Mar.

Na segunda-feira Sílvia participou da reunião habitual das chefias. Ela fora transferida da exaustiva função de Caixa do magazine e promovida para o controle do departamento de moda feminina. Com salário aumentado e mais comissão sobre as vendas. Daí pra frente, seis meses de calmaria se passaram...

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