sábado, 19 de maio de 2012

Capítulo 35

BILHETE do AZUL

Era segunda-feira, primeira manhã da primavera, um enorme grupo de funcionários, impacientes e já intrigados, diante das vitrines do Magazine Gigotteghy esperava que as portas se abrissem para mais um dia de expediente normal.

Pela primeira vez na história da empresa as atividades não começavam no horário. Algo estranho estava acontecendo. Um dos chefes de seção tomou a iniciativa de telefonar para a casa de Edoardo Santorini.

A informação lacônica da esposa do patrão é que ela não sabia onde ele se encontrava, nem o que poderia estar acontecendo. Seu marido saíra para a loja por volta de cinco da madrugada, bem mais cedo que de costume. As portas já deveriam estar abertas.

Quando finalmente o vigia daquela noite foi localizado, já dormindo em sua casa, trouxe as chaves e abriu o magazine. Tudo parecia estar nos seus devidos lugares. Os funcionários foram tomando o rumo de seus pontos de trabalho, aguardando as ordens das chefias.

Os chefes se encaminharam em bloco para o escritório da gerência. Abriram a porta da luxuosa sala. Aquilo não era o escritório dele, era o inferno: Dado Santorini pendia num grosso cordão de cortina preso no teto, no cabo do lustre que ficava bem acima de sua escrivaninha.

Seu rosto, inchado, tinha a cor azul da morte. Sua calça de nycron estava molhada na frente. A urina saíra da saliência que a rigidez da morte lhe causou e escorrera pela coxa esquerda. Era urina e esperma. O espasmo do enforcamento tinha feito aquilo, redundara naquela deselegância toda.

Seus olhos esbugalhados estavam prontos para sair de órbita. Fixavam o mundo sem ver a vida. Sua língua, fora da boca, virada para a direita e na direção do queixo parecia indicar o bilhete que, no tampo da mesa, roçava seus pés rígidos e numa posição que, num relógio, indicaria dez pras duas.

Ao chegar, a polícia afastou os curiosos da cena dantesca. E afastou também qualquer outra hipótese que não fosse o suicídio. O delegado De Santos tirou o bilhete da mão rígida e arroxeada do morto.

O bilhete extenso, e com a caligrafia de Dado, dizia tudo. Ele pedia perdão, à mulher, aos filhos, à equipe de funcionários e aos amigos que conquistara em Realeza, cidade que tão bem o acolhera por tanto tempo. Desculpava-se com os companheiros de clube de serviço e das diretorias de diversas instituições de caridade a que pertencia. Morria por não gostar mais de viver.

Os compromissos sociais, a fogueira de vaidades em que se metera, o luxo e a ostentação de riqueza, o tinham levado à bancarrota. Não tinha como pagar o desfalque. Não tinha como escapar da humilhação de ter sido desmascarado.

Bem embaixo dos pés do morto, sobre o seu risque-rabisque, havia uma carta com o timbre da matriz Gigotteghy, em Porto Alegre. Ele fora demitido no dia anterior por justa causa.

Os donos haviam descoberto tudo por uma carta anônima que falava no rombo que Edoardo Santorini abrira nos cofres da empresa para pagar seu romance clandestino com uma funcionária, casada.

Os papéis que comprovavam o roubo e levaram à sua demissão sumária, chegaram de volta às mãos dos patrões de Santorini. Foram enviados pelo delegado que não os mostrara a ninguém mais. A identidade da funcionária seduzida nunca foi revelada. Jamais foi conhecida.

O magazine funcionou sob os olhos de um dos próprios donos durante a primeira semana pós-escândalo. Logo foi decidida pela direção-geral da matriz uma nova gerência para a filial de Realeza: Ariadne Santorini, grega de nascimento, natural de Atenas. Viúva de Edoardo.

Dona de plena confiança de Papalos Pseudopolus – presidente da rede internacional Gigotteghi, seu amante há muitos e muitos anos. Mais que apenas isso, Papalos era o pai do último dos três filhos que Dado deixou pensando que eram todos seus – merecedores e herdeiros legítimos de seguros, pecúlios e ações da Companhia Telefônica.

Durante a administração de Ariadne, nenhum funcionário foi demitido. Passaram-se muitos anos. Os filhos se formaram. E ela deixou o Brasil. Livrou-se das constantes propinas que repassava aos emissários do delegado Carlo De Santos.

Vive amancebada com o também viúvo Papalos Pseudopolus na ilha de Mikonos – paraíso grego, referencial turístico da homossexualidade europeia.

Faz muito tempo que eles dormem em camas separadas. Os sucessivos aniversários fazem isso na vida da gente. Quando jovem, a gente sonha ou dorme sozinho apenas quando quer.

  
Capítulo 36

JOGA FORA!


O pequeno cochilo de Tutti, naquele meio de tarde, foi interrompido pelo beijo suave de Marizete, a sua governanta preferida.

Ela aproveitava aquele raro momento em que não havia mais ninguém na casa – dona Helena fora ao centro fazer compras – para procurar o amante casual. Tinha coisas para lhe falar.

Ele, sem abrir os olhos, abraçou-a e a puxou para o seu lado. Ela safou-se com delicadeza das mãos de Tutti e sentou-se na beira da cama:

-Tutti, não há tempo pra isso. Daqui a pouco a Grazzi vai chegar...
-Deixa disso...
-Não, agora não. Tenho que te dizer uma coisa.
-Diz, então.
-Tô grávida.
-De novo?!? Mas esse não é meu.
-É teu. Tenho certeza. Marcílio é estéril...
-Então é de outro...
-Tutti! Tu sabes que é só contigo que eu traio meu marido...
-Então, vamos fazer como das outras vezes. Eu te dou dinheiro e tu joga isso fora. Aborta! Quanto vai ser pro tal de médico dessa vez?

Marizete começou a choramingar. Limpou as escassas lágrimas e logo mudou de atitude. Dirigiu-se ao rapazote com um tom de voz decidido, de um jeito agressivo que Tutti ainda não conhecia:

-Dessa vez, eu vou ter essa criança. Já contei pro meu marido. Ele entendeu. Quero ser mãe! Ele entendeu.
-Tu tá maluca, mulher. Não quero compromisso. Não quero ser pai. Não quero me incomodar! - Deu-lhe um safanão. Ficou agressivo e, antes de enxotá-la do quarto, ameaçou:
-Tu vais tirar essa merda, pra não te arrepender pro resto da vida! – Bateu a porta com raiva e foi tomar uma ducha.

Meia hora mais tarde, passou pela cozinha antes de ir para a garagem. Pegou com firmeza o braço de Marizete e deixou um bolo de notas graúdas no bolso do seu avental:

- Toma. Pega esse grana. Dá pra mais dois ou três abortos. E nunca mais olha pra minha cara! E vê se me deixa! Essa foi a última vez! Larga do meu pé!


Capítulo 37

O FLAGRANTE


A cada dia que passava, mais crescia em Darlington o perfil de guru. Não foi por menos que Tutti o procurou para tratar daquela sua nova dor de cabeça. De bobo, o mais moço dos Berttucci não tinha nada. Sabia, muito bem, que Marizete o chantageava com seus frequentes anúncios de gravidez.

Duvidara de todos. Mas, não pagava pra ver; pagava pra não se incomodar. Agora, essa ameaça de querer ter o filho era demais. Aquela piranha estava pedindo pra se incomodar. Era só o que faltava: queria ser mãe... Queria ser uma puta que pariu.

Coisa de seis e meia da tarde, Tutti e Darlington se encontraram no Pub Cachecol. Era como se estivessem começando uma happy hour a mais. Dois Dry Martinis e castanhas de caju completavam a descontraída cena de barzinho fino. Depois de escutar o relato do garotão pressionado, o finório pau-pra-toda-obra sorveu um gole do aperitivo e sussurrou em tom gutural e duro:

-Ela tá roubando. Roubando de vocês!
-Hein?!?
-Ela tá roubando e o marido carregando! É só desmascarar esses dois.

Diante da perplexidade de Tutti, tomando seu drinque como quem só gosta de mesas de bar nessa vida maluca, o espertalhão explicou num fôlego só:

- Chapinha, te antena. Presta bem atenção... Tu vai dar o troco pra eles. Vais armar pra cima deles. Essa dupla vem te empulhando há horas, seu trouxa. Te liga, meu chapa, tu vai ter que dar sumiço numas jóias da tua mãe e nuns badulaques da tua irmã.
– Tá maluco, cara? Tua cabeça peidou! Tais com diarreia mental?!?
- Fica na tua. Escuta o que eu te digo: daqui a uns dez dias te queixa pro teu pai que sumiu dinheiro da tua carteira...
- Tô entendendo...
- Ah! Vê se afana algum da carteira dele também. Depois te explico...

Decorreu pouco menos de um mês daquela conversa e, num entardecer de sábado, depois de mais um dia de trabalho, bem defronte à mansão dos Berttucci, quando Marizete pegava carona com o marido, chegaram dois inspetores de polícia que lhes deram voz de prisão:

- Desce daí, moça!
- Mas, o quê?...
- Desce tu também aí, ô safado!

Assustado, o casal desceu da motoca. Sem maiores explicações, os policiais começaram a revistar a dupla e a lambreta. Na bolsa de Marizete encontraram dois anéis de Grazzi e um colar de pérolas de dona Helena, além de boa quantia em dinheiro.

Nada acharam em poder do marido. Entretanto, no bolso-bagageiro da lambreta, apreenderam cigarros de maconha, um pacotinho com algumas gramas de pó, um revólver de cano curto e um relógio Omega que há alguns dias sumira da gaveta do bidê de dom Fernando Berttucci.

Pronto! Tutti não seria mais papai.

O produto dos roubos anteriores nunca foi devolvido à família Berttucci. Também não ficaram em poder dos acusados. Tudo que vinha desaparecendo antes do flagrante era, invariavelmente, entregue por Tutti à guarda de Darlington que, como um sigiloso fiel depositário, mantinha o conjunto da obra em lugar seguro e inalcançável.

Quando Tutti os pediu de volta, ouviu de Darlington que os bagulhos tinham virado propina e servido de pagamento para a contratação dos dois diligentes inspetores que haviam montado o flagra na dupla de larápios.

Como os pais pensavam que Marizete e o marido eram mesmo os autores dos furtos, tudo ficou por isso mesmo. Roubos tomam chá de sumiço. A polícia sempre prende os bandidos, quase nunca encontra o produto do roubo.

Marizete, como estava grávida, cumpriu pena domiciliar. Marcílio pegou quatro anos, mas só passou seis meses na cadeia. Foi morto no banheiro coletivo do presídio, com uma estocada no coração que o livrou de ser estuprado.


Capítulo 38

BENDITA CHAVE


Naquele tempo, o automóvel era o grande e apaixonante objeto do desejo de dez em cada dez filhinhos de papai. Nenhum deles possuía o seu próprio carro. Bordejavam os logradouros mais românticos da cidade pilotando as fantasias motorizadas de seus pais.

Havia de tudo um pouco: Mustang, Impala, Packard, Studebaker, Austin-Morris, o Westminter A-95; fuscas, DKWs e a coqueluche do momento, o Simca Chambord – esses três fabricados no Brasil, graças a Juscelino Kubitschek, o JK, presidente bossa-nova.

Tudo parecia dar certo naquele tempo: a Seleção Brasileira seria bicampeã do mundo, Éder Jofre era o Galo de Ouro, Jovem Guarda, Bossa-Nova, Cinema Novo, Maria Ester Bueno deitava e rolava em Wimbledon, Yeda Maria Vargas foi Miss Universo, Elvis Presley, os Beatles, até João Só vendeu com o seu hit “Menina da Ladeira” mais compactos simples que Roberto Carlos e o Brasil já fabricava seus próprios automóveis.

Eles mesmos, os transviados de Realeza eram um sucesso. Em matéria de alienação eram insuperáveis. E ser alienado assim, não era para qualquer um. Nem se apercebiam que, tudo quanto faziam às claras por narcisismo, seus pais faziam às escuras, atrás das portas, só por cinismo.

Aqueles meninões todos eram uns filhos da puta e nem se davam conta. As gerações não se tocavam. Nem se bicavam. Não sentiam; consentiam. Todo mundo, quando convinha e apetecia, andava em cima do muro do silêncio.

A alta sociedade submersa, também tinha o seu clube da chave. Grupos de casais se reuniam uma, duas vezes por semana, para ver à meia-luz, em salões de portas fechadas, rolos e rolos de filmes pornográficos – ainda daqueles com mulheres de espartilhos e meias pretas e com homens de camisolão. Era o it da moda. Coisa importada do cinema novo europeu. Enquanto na penumbra do ambiente, se refestelavam, bebiam, comiam e jogavam as chaves de seus automóveis numa ecumênica taça de cristal.

À medida que os filmes perdiam o interesse, a libido levava as mamães a catar a esmo no fundo da taça o chaveiro que primeiro lhe tocasse os dedos. Depois era só procurar, nos carros estacionados pelos jardins da mansão da vez, o veículo que dava partida com aquela bendita chave.

Invariavelmente, o molho de chaves tinha uma delas que abria também a porta do chatô de seu dono. O cúmulo do azar era escolher a chave do carro do próprio marido. O mais comum, nesses casos, era uma furtiva quebra de regras. A mãe de um, trocava de chave com a mulher do pai de outro dos seus pobres meninos ricos. Valia tudo. Só para casais casados de verdade. Namorados e amantes levavam bola preta. Os jovens eram bons de rock. Os velhos, de swing.



Capítulo 39

FESTA É FESTA!


A garotada também não ficava para trás. Só não precisava de portas. Naquele tempo, farra que se prestasse terminava em orgia.  A velha e conhecida suruba.

Pelo menos uma vez por semana, a banda jovem e rebelde da cidade saía caçando empregadinhas domésticas que, depois de servirem o jantar, se deixavam coxar na penumbra das varandas das residências onde trabalhavam.

Em geral não passavam de galinhagem, muita bolina e amassos de portão. Muitos deles, no entanto, acabavam em gravidez e aborto.

Encantadas com a lábia, o charme e o veneno dos meninos ricos, muitas delas se deixavam levar ao rendez-vous de um amigo do galante sedutor.

Não raro, o encontro sigiloso ia se contaminando pela chegada inesperada do dono do lugar que, por sua vez, nunca vinha sem uma namoradinha. Daí à suruba era só um mero e rápido gesto de apagar a luz. Em compreensíveis casos de resistência, a bandalheira virava curra.

Naquela noite de chuva lá fora, ali na escuridão da suruba do chatô comunitário, ninguém mais sabia quem era quem. A música do bandleader canadense Percy Faith fazia o fundo romântico que já chegava às loucuras.

Pernas batiam com pernas, braços com braços, bocas com bocas e seios e lábios de classe alta e partes baixas se misturavam ensandecidos e sôfregos. Era uma gandaia e tanto. Duas gatas e dois gatões. Oito pernas, oito braços, quatro daqueles metidos em quatro daquelas.

Paolo Bianco, um colecionador de calcinhas, até então tinha pleno domínio de sua gatinha no emaranhado daquela gostosa bagunça. Estava abraçado com ela quando sentiu que era tomado pelas costas pelo calor da ronronante garota do seu parceiro de festa.

Ele beijava Celeste, enquanto Rosilene passava-lhe a língua suavemente na nuca. Paolo sabia que estava a ponto de atingir o orgasmo.

Ah, que loucura aquela boca quente e gulosa que sugava seu viril acidente fisiológico! Ia estourar de prazer.

- Vai, suga! Ai, assim... Não pára. Não pára Rosilene...Ah, hmmm...

E foi então que se antenou: os lábios de Rosilene estavam na sua nuca... A boca de Celeste estava em sua boca... Porra! Quem estava com a boca na botija dele?!?

Acendeu a luz do abajur e deu de cara com a realidade mais comunista daquela altura de sua perdida juventude:

- Quié isso, frei Chettolla!?! Esse pau é o meu! Caraaaalho!...
- Festa é festa, meu camarada... – justificou-se inocentemente o pecador.

Brochura geral. Aquilo não estava escrito. Saiu fora da liturgia. A suruba foi se transformando aos poucos numa troca de confissões.

Baixou o consenso geral de que o mais plausível era seguir os conselhos politicamente in/corretos de quem sabe o que faz numa hora dessas: o quarteto relaxou e gozou.

Então, o que ali se falou e se fez, por ali mesmo ficou. De uma batalha de alcova, a cena infernal virou segredo de confessionário.

Mas, dali em diante, como justificativa para qualquer desatino ou sacanagem, a frase ganhou as ruas e pegou: Festa é festa, meu camarada!

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