sábado, 19 de maio de 2012

Capítulo 40

PEGA PRA CAPAR


Já naquele tempo, bem antes da Arena ser engolida pelo PT, o mundo estava mudando; a doce vida da província também. De tanto andarem pra cima e pra baixo, sem destino, paquerando a meninada, os playboys foram disputando beleza entre si e criando um permanente confronto entre a paciente arte de bordejar e a destemida técnica da grande aventura da velocidade.

A inspiração vinha das carreras automobilísticas que invadiam as carreteras – velhas autoestradas castelhanas sem acostamento e sem sinalização.  Boas para os cupês americanos com mecânica Ford, Chevrolet, Cadillac. Dinamite! Adrenalina! Purpurina pura!

Logo surgiram os desafios. E a pista da Avenida Dom Bosco, entrada norte da cidade, virou point dos pegas que, naquelas paragens eram mais convincentes do que rachas. Eram os mais malucos que se pode imaginar.

As noites de segunda-feira, dia de trocar as histórias dos fins de semana, se transformaram em data certa para os duelos de pilotagem clandestina.

A visibilidade foi crescendo à medida que as notícias se espalhavam boca-a-boca. A maioria, não tinha sequer carteira de motorista. Isso servia apenas para aumentar a adrenalina.

Cada prova era um desfile exuberante de carrões e gatões. As gatinhas se desmanchavam à margem da pista mostrando sua devoção aos ídolos daquelas noites de emoção e rebeldia.

As disputas logo se acomodaram naturalmente. Os mais potentes competiam com os mais potentes; os de menor cilindragem enfrentavam os seus iguais.

A pista era a única avenida asfaltada de Realeza do Sul. Tinha um pouco mais de mil metros. Daí surgiu a disputa do clandestino “Quilômetro de Arrancada”.

O prêmio era um kit de mimos: troféu folheado a ouro, oficina de graça no Zarolinho, melhor mecânico da volta, uma namoradinha aleatória da gangue e uma viagem com tudo pago para uma semana em qualquer praia do Uruguai, ou reberbelas das cercanias.

Os primeiros pegas de cada sábado botavam em confronto a categoria menos pesada: DKWs, Fuscas, Austins, Morris.

A parte forte da doideira ficava por conta de Mustangs, Impalas, Chevrolets Bel-Air, Thunderbirds, Studebakers, Packards. Tudo oito cilindros e com mais de 300 cavalos de força. Emoção a dar com um pau; não raro, cavalos de pau.

Aquilo virou uma enorme passarela de exibicionismo. De ostentação. Era o melhor jeito de causar inveja aos plebeus. Uma nova escala à margem das convenções sociais estabelecidas. Quem não tivesse carro para desfilar e competir, estava fora de foco. Não entrava no círculo. No máximo, ficava na volta, batendo palma, aumentando a claque.

Foi de cair o queixo: no meio de uma tarde modorrenta, de repente, assim não mais que de repente, eis que senão quando aparece ninguém mais nem menos do que Betinho Temprano dirigindo um flamejante Austin Westminster A-95.

Era um sedan, verdoengo, quatro portas, com jeitão de um sóbrio carro de família. Novinho em folha.

Betinho, de um reles filho de barnabé, funcionário de pouca graduação no contexto da administração municipal e do tecido social mais graduado, passou a ser o centro das atenções e de olhares de inveja mesclados com admiração nunca dantes recebidos.

Deu uma volta atrás da outra pelo coração da cidade, saboreando os esgares que sua máquina zerada atraía.

Betinho, notório piolho de rico, ganhava assim o visto de entrada na estreita roda dos bonitinhos citadinos. Logo quis ingressar na rodada do próximo sábado. Estacionou a poucos metros de onde se encontrava a banda dos narcisos, disse o que queria e levou, de cara, um corte de Tutti, um dos mais influentes da patota:

- Antes, tem que passar pelo racha da sexta-feira.
- Ah, o pega pra capar. Tô pronto – topou, como se soubesse o que era.
- Tu tem que vencer alguém, da segunda bateria, nos 100m de pique.
- E como é que eu faço?
- Não faz. Já estais inscrito. Vem pra avenida na sexta, noite alta. Tu vai ter esse carro na mão, sexta de noite? – ironizou Tutti.
-Tenho, o velho me deu uma chave. É só pegar na garagem...
- A caranga dorme na garagem, é?!?
- Dorme. É a maior barbada. O portão não tem tranca.
- Então, combinado: sexta, antes da meia-noite. Todo mundo lá.
- Quem é que eu vou topar?
- Tu é bronqueado com o Gegê. Vais pegar pra capar o fusca do Gegê...
- Aquela onça? Tá no papo.
- Até lá então, meu herói.
 
Sexta-feira, quase meia-noite. Avenida atopetada de carros, carrinhos, carrões, carretas, carangas envenenadas; plateia alucinada, trocando baguinhos de marijuana, tomando Cuba-Libre, bebendo ceva no bico das garrafas, puxando um Minister de vez em quando, pois até cigarro tinha pra fumar naquele rolo.

Os dois carros alinhados no ponto de partida. Betinho Temprano, exultante no seu Austin verdoengo, novinho em folha; Gegê, na sua fusqueta, uma caranguejola esculhambada, “sem noção” para uma arrancada de cem metros.

Betinho estava certo da vitória contra aquela carcaça. A prova do pega pra capar era o sinal verde para ingresso definitivo de um novato na roda dos maiorais.

Virgininha, uma meninota sapeca, namoradinha de vários deles, daria o sinal para ligarem os motores. O pega agora dependia dela. A parada estava mais para racha do que parecia.

Chegou a hora. Os competidores se alinharam. Ela tirou, com maestria de stripper exibicionista e sem qualquer cerimônia, a calcinha vermelha e a ergueu como sinal de aviso para os desafiantes. Betinho e Gegê se concentraram na peça esvoaçante que já não protegia as partes pudendas da menina atrevida. A plateia delirava. Os dois trocaram um olhar ansioso e de poucos amigos.

Betinho viu um sorriso estranho no adversário. E mais: a porta da fusqueta estavaentreaberta. Gegê que se ralasse.

Prestou atenção na calcinha de partida. Virgininha contou até três, desceu a mão direita. Deu a largada!

Betinho acelerou na direção do seu sonho de entrar na alta roda.


Capítulo 41

SINAL FECHADO


O motor do Austin A-95 roncou furioso – como se estivesse brabo com a algazarra. E Betinho partiu. Percorrera menos de 20 metros e a sua roda dianteira da direita saltou fora. O Austin bateu com a ponta de eixo no chão e abriu uma cratera na pista.

Betinho deu com a testa no espelho retrovisor e abriu um corte profundo acima do nariz, entre as sobrancelhas. Espantado viu a roda subir a calçada, uns seis ou sete metros adiante. E, incrível, extraordinário: viu Gegê passar por ele correndo... a pé!

Segundos depois, Gegê cruzava a faixa de chegada. Vencera a corrida. O fusqueta estava lá atrás, parado no ponto de saída, com o motor funcionando alegremente, em ponto-morto.

Betinho Temprano, desmoralizado, saltou furioso em direção ao debochado desafiante que agora, mais que adversário, era um inimigo. Foi impedido de consumar a agressão pela banca julgadora do grande teste.

Logo, foi jogado para o ar três vezes. O seleto público o aplaudia e festejava delirantemente.

Pronto! Betinho tinha passado pelo batismo de fogo, o pega pra capar. Estava matriculado no grande círculo dos rachas da Avenida Dom Bosco.

Gegê foi ao seu encontro, apertaram as mãos e ficaram mais amigos do que nunca tinham sido.

Aquilo de, na noite anterior, terem entrado escondidos na garagem dos velhos e afrouxado os parafusos da roda do Austin, fazia parte da farra. As explicações do estrago para os velhos em casa, também.

Dali em diante, a confiança dos pais em Betinho nunca mais foi a mesma. Nem o Austin Westminter. A caranga ficou viciada em puxar para direita pro resto da sua vida útil.

Betinho perdeu a regalia de ter uma chave só para ele e nunca mais conseguiu sair com o carro nos finais de semana. Moral da história: bailou na curva. Sem carro, não entrou na roda. Perdeu a matrícula. Era só mais um reles plebeu.

Meses depois, encontrou-se casualmente com Darlignton e Sílvia na porta de um dos clubes de jogo. Eles aguardavam a chegada dos parceirinhos de sempre para iniciar mais uma longa jornada noite adentro.

Betinho aproveitou o acaso para pedir sinal verde a Darlington e assim conseguir seu reingresso no bando dos pegas. O papo foi interrompido pela chegada da patota. Ao ser deixado de lado, enquanto o grupo entrava no clube, ainda escutou o desaforado Gegê lhe ordenar a distância e com desdém:

- Vai te juntar com a tua turma!


Mas, teve ouvidos também para escutar num sussurro, a voz conciliadora de Darlington:

- Fica frio. Vou dar um jeito nisso. A gente se fala – o tom era de quem sempre conseguia uma saída pra tudo, por radical que fosse.



Capítulo 42

LUZES PARA O SINAL


Betinho estava certo da mão amiga de Darlington. Ruminava um episódio que o incorporava aos compromissos de gratidão que Darlington jamais deixava de honrar. E entrou na máquina do tempo. Viajou para trás...

Sílvia sempre tivera por aquele gatão, uma admiração natural. Era um pão. O primeiro olhar trocado no ônibus apinhado que os levava para o trabalho, virou amor ao primeiro roçado. A superlotação do coletivo naquela manhã jogara - ela jamais esqueceu - o corpo de Darlington contra o dela.

O contato de suas costas com o peito dele foi o prelúdio para um leve e gostoso calor na nuca e a agradável sensação de ouvi-lo sussurrar um delicado galanteio. Nunca mais deixaram de se fazer companhia. Daí pra frente eles andavam sempre juntos.

Darlington não era ciumento. Não permitia, porém, desrespeito. Já tinha visto os olhares gulosos do cobrador daquele carro para cima de Sílvia. Desconfiava até que, um dia, teria escutado uma piadinha ou coisa parecida, disparada pelo atrevido na direção de sua Silvinha.

Aquilo não era coisa que se fizesse. Falta de respeito com ela. E com ele. Pegou bronca com o cara. E tudo foi só uma questão de tempo.

Naquele já antigo início de noite, telefonou para Betinho Temprano e o convidou para uma pequena aventura: dar um susto num cobrador  “metidinho à besta” que, naquela manhã há uma longa data ainda não esquecida, tinha se aproveitado de que Sílvia estava desacompanhada no coletivo e lhe passou a mão no traseiro.

Aquele fedelho tinha extrapolado os limites. Bolinou à mão cheia a sua noiva. Darlington contou a Betinho a desonra que sua bem amada sofrera.

Foi o que bastou para despertar no garoto o espírito de juventude transviada que tinha no corpo. Nem precisava dizer mais nada. Estava pronto para dar o susto merecido no trocador abusado.

Betinho entendeu que Darlington acendia-lhe as luzes para um possível sinal verde logo adiante, num desses momentos de aperto ou de alguma necessidade. Isso ficou pra lá de claro na sua cabeça.

Agora, parecia que um filme se repetia na sala de recordações de Betinho.

Estava querendo, como há muito tempo tentava, encontrar uma brecha e fazer parte da patota mais fina da cidade. E relembrava então com toda nitidez aquele lance de tempos atrás em que, fazendo-se cúmplice de Darlignton, tinha ficado com um bom crédito com ele para uma hora de aperto. Lembrava como se fosse hoje:

Darlington naquela ocasião, já o fizera saber que aquela seria a sua grande chance de provar que poderia realizar seu sonho de entrar na elite que o rejeitara até então.

- Tu consegue pegar o Austin do teu pai pra hoje à noite?
- É Mole. Tá na mão.
- Feito o carreto. Vou te botar na turma.

Betinho parecia que estava escutando agora o papo que os dois levaram combinando o plano de ação para o susto no taradinho das catracas:

- Eu e tu vamos pegar aquele coletivo às onze da noite.
- Nessa hora? Pegar, como? Vamos bancar os passageiros?
- Isso... É a última viagem do dia. Eles vão direto pro fim da linha.
- E aí?
- Aí a gente embarca, paga a passagem e... Na hora dá o susto no paspalho. Ele vai ver o que é passar a mão na bunda da mulher dos outros.
- Mulher dos outros é?
- Picas! Da minha mulher! E pode pará por aí, fica na tua. Não avança o sinal.
- Tá eu sei; tava brincando... E aí eu faço o quê?
- Tu empresta teu carro pro Caccillares. Ele vai nos seguir de perto. Espera o nosso lance e nos garante a volta.
- Vai ser só nós dois bancando passageiro de ônibus?
- Só nós e dá de sobra. Caccillares fica no Austin, nos esperando.

 

Capítulo 43

ÚBERES DESLEITADOS



Mal o coletivo com aqueles dois últimos passageiros parou no fim da linha, um recanto escuro do populoso bairro, Betinho deixou o lugar onde estava sentado, no meio do carro, e foi ao encontro do motorista. Já de capuz na cara, apontou o revólver Taurus.38 para o nariz dele:

- Fica quieto aí, véio... O meu chapa vai tratar dum assunto com o bestinha aquele ali – e com um sinal de cabeça apontou o cobrador.

O motorista ficou petrificado. Aquilo não era comum naqueles tempos. Na traseira do carro, Darlington – também encapuzado e com pose de um enorme Napoleão – com a mão direita enfiada na jaqueta, se aproximou do garotão, ainda sentado na cadeira, prensado naquela espécie de púlpito exclusivo de cobradores, lá atrás do carro vazio:

- Tira as mãos da gaveta, palhaço!
- Eu... Ó moço, pode pegar o dinhei... – Gaguejou, tirando a féria da gaveta.
- Não quero essa merda. Não sou ladrão. Bota as mãos em cima dessa mesinha aí... Bota logo, fiadaputa!

Assustado, o cobrador cumpriu a ordem. Darlington puxou de dentro do blusão um martelo e o usou com vontade. Duas vezes. Na primeira porrada quebrou dois dedos da mão direita do guri; na segunda só livrou o polegar.

A mão do garoto parecia uma luva esquecida em cima da mesinha. Quando ele a segurou com a esquerda os dedos pendiam como úberes desleitados, tetas de leite derramado.

-  Isso é pra ti aprender a usar direito essa mãozinha. Enfia esses dedinhos agora no respeitável cu da senhora tua mãe, seu bosta!

Não demonstrou ter ouvido os gritos lancinantes de dor, nem revelou qualquer sentimento pela brutalidade que acabara de cometer. Ainda fez menção de dar uma martelada na testa do pobre bicho. Sorriu, guardou o martelo, saltou para a rua pela porta dos fundos do ônibus e gritou para Betinho:

- Pronto. Feito o carreto! Dá o fora. Sim’bora daqui, vamo!

Betinho obedeceu prontamente. Disparou pela porta da frente rumo ao “perigo azulão” queos esperava e sumiram do mapa. Nada saiu nos jornais. Ninguém mais ficou sabendo de coisa alguma. Só Silvinha. Na justa medida em que se sentiu protegida e vingada, mais cresceu a sua admiração por Darlington.

E foi assim que ele contrariou Molière que, em Don Garcia de Navarro garantia que “nunca se entra, pela violência, dentro de um coração”. Ele entrou no coração de Sílvia. E Betinho entrou no rol daqueles para quem Darlington devia pequenos e propositais favores. Pagar favores assim era uma questão de honra. Era o seu velho jeito de fazer amigos e influenciar pessoas.



Capítulo 44

MENSAGEM CURTA E GROSSA

  
Todas as noites havia uma legião de jovens descolados perambulando com Darlington pelos antros de jogatina, beberagem e fumaça. Nunca chegaram a perceber que, volta e meia, ele desaparecia nas noites por bons momentos.

Se, antes de retornar de suas andanças, eles precisassem de algo, Silvia cobria as paradas, resolvia em seu santo nome qualquer assunto com eles. Ela sabia das coisas e era de plena confiança.

Quando ele se juntava novamente à turma, já estava de bolsa pronta para garantir o poder de mando sobre o grupo. Sempre tinha favores para usar como moeda de troca.

Antecipando Tim Maia nos anos 80, ele jurava que não bebia, não jogava, não fumava, não cheirava. Mas, às vezes, mentia.

Numa dessas escapadas, numa perdida noite de quinta para sexta-feira, ele foi até à caixa externa de correspondência da gráfica e editora da Livraria Novo Mundo e lá deixou, furtivamente, o pedido inaugural da quase interminável série de pagamentos que, um dia, deveriam ser suficientes para resgatar os negativos de Grazziella sugando, sôfrega, o namorado tridimensional.

A mensagem era curta, grossa e crivada de erros propositais, em letra de papel recortado: “Bota 2 mil dólar num saco vasio de pão, dentro da lata de cisco, hoje às 6h da manhã. Se vacilá, os retratos vai pará na boca do povo”.

Poucos minutos depois, ele se juntava aos aprendizes de feiticeiro que se alucinavam em torno das mesas de bacará num dos clubes da classe remediada de Realeza do Sul.

Dali saiu todo mundo para uma noitada que acabou no restaurante Bife de Chapa, com uma rodada completa de “Maria-Rita” pra todo mundo.

Não, Maria Rita não era a mãe de algum xarope, algum chato de galocha que se comia. Era uma travessa de arroz com linguiça desmanchada, fora da tripa; salada de tomate, pepino e cebola às rodelas mergulhadas em sal e vinagre. O pão acompanhava aquela rústica refeição, mas vinha sempre na conta.

Aquele prato era conhecido por Maria-Rita, mas também atendia pelo popularesco apelido de arroz de puta pobre. A rodada foi até altas horas.

Das três da madrugada até às 5h30 ele e Silvia fizeram gato e sapato enrolados nas cobertas leves e primaveris do seu apartamento, no coração da rua XII de Outubro. Seu banho foi rápido e reconfortante.

Duas, sem tirar, tinha sido bom; mas três tinha sido demais. Fez bem. Fez dormir.

Sábado claro e radiante, às 6h15, o moleque debiloide chamado Cavalo, depois de desempenhar o papel de cisqueiro, o gari da época, entregou para Darlington o pacote com a grana que recolhera na lata de lixo – conforme lhe tinha sido ordenado, sem saber qual era o conteúdo.

A popular figura recebeu uma gorda gorjeta em troca do bom serviço prestado. Naquela manhã, Cavalo tomou no Bar e Cafeteria Vidraça, o melhor café da manhã de sua vida. Dinheiro no bolso é vendaval.

Às oito horas, em ponto, Darlington abria as portas da Casa do Produtor Rural, para mais um dia de proficiente trabalho. Ninguém soube de nada. Só ele, Dom Fernando e Silvia. E Dom Fernando, bem menos que o casal-bandido. Ele soube só da parte ruim da urdidura. 


Capítulo 45

A PRIMEIRA PARCELA


Domingo, na missa das dez, no momento eucarístico, Darlington entrou na fila da comunhão. Bem atrás daquele fingido e conhecido devoto a quem, para fins de conluios, ele chamava de Paparazzo.

Quando se ajoelharam diante do altar da Catedral Nossa Senhora de Fátima bancando papa-hóstia, Darlington passou para o bolso do outro fariseu daquela santa cena, um envelope branco que já lhe queimava as mãos, como se fosse o fogo do inferno.

O cenário não se prestava para um ritual daquela natureza. Por isso mesmo fora previamente escolhido pelos dois dissimulados intérpretes de fiéis.

Lá se esvaíram das reservas de Darlington os 800 cruzeiros, na época tradução nacional dos primeiros 400 dólares da comissão de 20% para o bolso do outro descrente. Era o que lhe tocava pelo trabalho fotográfico que, desde aquele flash na varanda dos Berttucci, só agora começara a lhes dar lucro.

Doía um pouco nas suas economias, mas não lhe machucava o coração. Nisso Darlington era diferente da maioria dos escroques, sabia agradecer àqueles de quem recebia alguma coisa.

Paparazzo merecia. Ao fim e ao cabo, o cara se arriscara e, mais do que isso construíra o móvel principal do plano que já estava começando a render.

Não é nada, não é nada, um embrulho de 1.600 dólares por quinzena, limpinho, livre de sangue, suor e imposto, não cai do céu assim de repente, nem mesmo rezando pra tudo quanto é santo na missa das dez. Bolas, 400 dólares a menos de um pacote de duas mil verdinhas com a cara do Tio Sam, valiam a pena.

Darlington era assim. Sabia a diferença entre um trabalho feito por amor e as atitudes que se toma por reconhecimento. Ele poderia até ser um cara frio e calculista, mas na subvida da trampolinagem não podia ser mal-agradecido. Ingrato, ele não era. No submundo da sacanagem, não.
 

Capítulo 46

NAS TELHAS


A semana corria faceira. Ao fim do seu expediente na Casa do Produtor Rural, naquela sexta-feira, ele foi buscar Silvinha na loja de departamentos onde ela trabalhava. Derrubaram uma ou duas tulipas cada um, com sanduíche simples de presunto e queijo aconchegados em manteiga da Colônia, na tradicional A Toca do Chope.

Ali mesmo, na mesinha embutida aos fundos da diminuta tasca – sob os eflúvios da ureia que serpenteava do sanitário unissex para o corredor, planejaram o que seria mais aquela noite suja.

Aquele boteco inspirava. Era uma espécie de capela sagrada de beberrões contumazes, o passadiço era bem por onde os fiéis clientes transitavam como se estivessem cercados de naves que os conduziam à comunhão dos copos de cada dia.

Tinha um não sei quê de fascinante que, mesmo comendo um misto-frio aspirando cheiro de urina e de outros desvalores eventuais, ninguém se via na obrigação de pedir um copo de mijo com colarinho maduro.

Bastava gritar: merda! E pronto, vinha o melhor misto-frio daquele lugarejo de bom porte, já afamado como o Cone Sul do mundo. Misteriozinhos, tipo assim pequenos milagres que só acontecem em mesas de bar.

Acertaram que naquela sexta-feira de lua cheia ele partiria para outra empreitada mais ousada e que ela, Silvinha, assumiria as funções de mediadora da turma que já se alvoroçava pelas mesas das casas de refeição e aperitivos como a Acrópole, Taberna de Pandora, Fruteira Nacional, Van Gogh, Rancho Fundo. Além, é evidente, dos que abasteciam com suas mesadas de filhinhos de papai as caçapas do tradicional Snooker Butantã e as mesas redondas dos carteados da volta.

Ela entraria no embalo, mais assim como uma interlocutora atenta. Ficaria de olhos e ouvidos abertos para todo e qualquer socorro que eles precisassem: de dinheiro a condução; de fichas a moringas; de cheques-voadores a convites para teatro, ou às bailantas além do circuito urbano, os conhecidos e convidativos bailes pra fora.

Seu lance naquela sexta era meio Meneghetti - o velho e simpático ladrão, pulador de telhados, mestre da moda em fugas espetaculares conhecido então em todo o território nacional por suas façanhas. Coisa assim de andar nas telhas; quase de capa e espada. Mas valia a pena. Tudo já estava programado. O risco era calculado. Não dava para desistir. Arregaçaram as mangas.

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