sábado, 19 de maio de 2012

Capítulo 45

ÁGUA DA GUERRA


Para Silvia aquela sexta foi mixuruca; a noite acabou mais cedo do que o habitual. Não saiu jogo, em lugar nenhum. As festas eram mais de aniversário, tipo classe média baixa. As roletas estavam sob marcação dos pés de porco. A propina civil e militar era coisa do noivo e não dela.

Restara como perspectiva de sábado, o prado – jeito doméstico com que se referiam ao turfe, às corridas de cavalo. Darlington já tinha tudo quanto era pule de dez, todas as barbadas. Silvia, descartando certa premonição, dispersou a galera, deu tchau e benção e foi para o chatô antes da undécima hora.

Preparava-se para dormir quando Darlington chegou, caindo aos pedaços. Sujo, molambento e arrastando a perna direita inclinou-se até seu colo de seda macia, com um ar dolorido que lhe esgarçava a boca e enrugava os olhos.

Achou uma gostosura o aroma de Arpége que envolvia aquelas coxas gostosas, mal cobertas pela camisola azul celeste.

Ele levara um tiro nas proximidades da virilha. Por pura sorte fora apenas de raspão; mais pro lado de fora, distante do púbis e seu precioso artefato. Pouco sangrou, mas ardia pra burro. Doía muito.

Ele tinha a impressão de que a perna ia se despregar do tronco. Bobagem. Pequeno cavaco do ofício. Era só um tirinho mal dado de calibre 22 – uma bala pequena que, quando entra, procura a saída.

- Quié isso, darling, no que tu te meteu?!?
- Nada, baby. Nada. Os morféticos chegaram na hora. Tive que pular da janela do terceiro andar.
- Que morféticos, benzinho?
- O Dr. Liberato e a mulher dele, Anna Christine...
- Aquela que foi miss, miss... Miss o quê mesmo?
- Sei lá, vice-miss Suéter, vice-qualquer coisa. É, é ela mesma. Ai, hhâmm... Tá doendo essa porra!
- Vamos pro hospital...
- Nem pensar, mimosa. Isso não é nada. Não quero médico. Isso tu sabes tratar. Bota um curativo aí, com mercúrio e algodão... Eu to querendo é um advogado. Acho que me reconheceram...
- Eles sabem desse nosso apartamento aqui?
- Não. Com certeza, não. Vê se tem aí um pouco de Água da Guerra...


Capítulo 46

NUMA BOA


O curativo foi feito. Lá por volta das duas da madrugada, na quinta tentativa conseguiram falar com o seu advogado, Dr. Josué Daorla – criminalista de enorme experiência e amplo jogo de cintura em matéria de Direito Penal.

Exercia o que chamava de advocacia de resultados. Depois de ouvir em silêncio como era do seu feitio, o ofegante relato de Darlington, ele tranqüilizou seu constituinte:

- Você não é réu. É vítima.
- Sou o quê, doutor?
- Vítima, rapaz. Vítima.
- Eu, vítima? Sou vítima?!? Boa, meu doutor! Gostei...
- É, vítima. Deixe pra lá. Fique frio, vá dormir sossegado.
- Mas...
- Passe pela manhã no meu escritório, lá pelas oito e vamos até à Delegacia de Polícia. Lá é tudo com o De Santos. Venha sozinho. Vá dormir. Sonhe com os anjos.

Antes que ele quisesse saber mais alguma coisa, o advogado desligou o telefone. Certo de que aquela raposa das lides forenses tinha alguma carta guardada na manga, Darlington foi fazer o que ele lhe disse: em poucos minutos estava dormindo, numa boa.

Depois do café da manhã, avisou por telefone a seus curadores que iria chegar um pouquinho mais tarde. Pediu que abrissem a loja. Ele compensaria o transtorno com algumas horas a mais de expediente.

Os velhos estranharam aquele inusitado pedido, pois não era habitual Darlington faltar às suas obrigações. Até então, ele se atrasara apenas uma vez e eles já nem sabiam bem por quê. Era um rapaz cumpridor de seus compromissos.

Sem qualquer suspeita sobre a dupla personalidade do filho que tinham em casa, os velhos abriram a loja. Numa boa.

Darlington chamou um carro de praça e passou no escritório do Dr. Josué. Só ele. Silvia foi trabalhar, como se nada estivesse acontecendo. Ela era boa na arte da simulação. Sabia fazer de conta melhor do que ninguém. Numa boa.
 

Capítulo 47

REGISTRO DE OCORRÊNCIA


O médico e a sua linda mulher já estavam na delegacia central, à espera da conclusão da ocorrência. Tinham denunciado Darlington – para eles um conhecido finório metido a bacana - como o assaltante que invadira sua residência.

Inspetores de polícia e várias duplas de Pedro e Paulo – arremedo gaúcho da velha ronda carioca Cosme e Damião - passaram a madrugada toda à cata de uma pista, à procura de um sinal do suposto assaltante fugitivo. Tinham uma nebulosa ideia de onde poderia estar o safardana. Mas deram com os burros n’água. Tudo resultara em nada, naquela blitz noturna.

Por volta de oito e meia da manhã, à entrada inesperada de Darlington e do seu advogado seguiu-se um princípio de tumulto que o próprio Dr. Josué desfez, esfriando os ânimos acalorados do assustado e indignado casal.

O advogado teve o cuidado também de pedir aos repórteres policiais que aguardassem o desfecho de tudo para só então fazerem suas anotações. Tinha uns macacos velhos de uma rádio, do vespertino local e fotógrafos das sucursais de jornais da capital.

A indignação e o desconforto do casal tinham razão de ser, afinal o ladrão conseguira tirar do cofre atrás do quadro, em cima da cabeceira de sua cama, um colar de pérolas, uma grossa corrente de ouro 24 quilates e um relógio Patek Philippe daqueles de se usar pendurado no colete. E coisa de trezentos e poucos dólares.

Àquela altura, o Boletim de Ocorrência já estava pronto. Pelo lado do casal. Faltava agora o depoimento de Darlington. Faltava a outra parte do caso. O lado bandido da história. Conforme orientação do seu advogado Darlington foi calmo e sereno quando depôs ao delegado-chefe da DP, Carlo De Santos:

- Doutor, eu posso esclarecer tudo. Mas, tem uma condição...
- Condição? Você ainda acha que pode fazer alguma exigência?...
- É que não quero ser grosseiro com a madame aqui...

A voz do acusado passava tranquilidade e respeito. Um sorriso altivo e provocante era a marca de desdém do abusado pela atitude do casal que o acusava. E então revelou o que queria:

- Falo com o senhor, mas a sós. Sem eles por perto.
- Pode ser. A menos que não concordem – disse o policial olhando o casal.
- Claro que sim, delegado. Quanto mais distantes desse ladrão, melhor...
- Acalme-se, doutor. Não é preciso que saiam. Posso tomar o depoimento dele na outra sala – disse De Santos.
- Não, não se incomode. Deixe pra lá. Esperaremos aí ao lado...

Bastaram dez minutos, nem tanto, para mudar o rumo da história. Em seguida, o delegado chamou o médico e a esposa para que tomassem conhecimento da amestrada versão do acusado - um relato combinado com o seu nobre defensor a caminho da delegacia, em voz baixa no banco de trás do táxi, para que o motorista não escutasse nada.

O chefe da central de polícia passou então a ler para os presentes em voz alta e compassada, a nova peça declaratória, sem preocupação de ser ouvido pela imprensa. Um primor de desfaçatez. O texto e a atitude fria do delegado:

- “Diz o depoente, Darlington Pontlove que, depois de praticar coito anal estava na posição, descrita como 69, com a senhora Anna Christinne, na suíte do apartamento do casal, no terceiro andar do edifício Wine’n Roses – quando foram surpreendidos pela chegada intempestiva do marido Dr. Bocaccio...”.

Os denunciantes perderam a cor. A esposa estava para desmaiar; o marido roxo de ódio interrompeu o delegado aos gritos:

- Pare, pare! Pode parar!. Rasgue isso e anule já este registro de ocorrência!
- Mas, doutor...
- Faça de conta que nunca estivemos aqui. Esqueça! Bom dia, delegado. Passe bem.

Escandalizado, sem saber o quê melhor fazer, abraçou-se à sua mulher e logo saíram porta afora, rumo ao infinito. O caso nem chegou a ser arquivado. Nunca existiu. Nem mesmo para as rádios e os jornais. Carlo De Santos sabia como lidar com a mídia.

Pouco depois, a cem metros da delegacia, dentro de um novo carro-de-praça, o finório pagou a assistência do Dr. Josué Daorla com um abrasado e resplandescente Patek Philippe. Despediram-se.

Darlington era isso mesmo. Sempre que caluniava alguém, era com enorme contundência. “Calúnia feita com audácia, sempre parece que é verdade” – já em casa dizia para Silvinha entre afagos e com cínica sabedoria.

Darlington passou a tarde de domingo trocando o curativo na virilha. Recebeu um único telefonema. Pouco depois, um inspetor de polícia pegava na portaria do prédio, um envelope pardo.

O pombo-correio entregou a encomenda ao delegado. Aqueles 300 dólares não causaram nenhum mal a Darlignton. Fizeram muito bem a De Santos. O mensageiro levou trintinha pelo serviço de pronta-entrega.

A sessão de arrufos na domingueira foi desempenhada só por ele. Tratamento via oral. A virilha estava um inferno. A virilha dele. A dela era um paraíso. Na segunda-feira ele já recobrara a perfeita forma. Silvinha ganhou um lindo colar de pérolas. Darlington – o Magnânimo achou que ela fez por merecer.

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