sábado, 19 de maio de 2012

Capítulo 48

PRESAS FÁCEIS


O dinheirinho de Dom Fernando Berttucci era sagrado. De duas em duas semanas, os dólares tilintavam na caixa registradora do anti-herói. Silvia fazia a contabilidade. Os 20% de Nilo Papiro também eram sacrossantos.

Eles não tinham como investir em bens imóveis. Melhor era ficar na moita. Gastavam muito em propinas oficiais e financiamentos marginais para os comedores de bola. Mas, o negócio ia bem, obrigado.

O diabo é que não podiam ostentar riqueza. Eram apenas dois simples comerciários. Até compraram, sem fazer alarde, alguma coisa na praia de Maresia, beira do oceano Atlântico; um pouquinho em Piriápolis, no Uruguai e um pequeno sítio lá em Montanha Querida, um recanto bucólico ainda no Brasil, mas com um pé na Argentina.

Os parceiros eram o seu grande patrimônio. Era com eles que viviam à la gandaia: bons vinhos, bons jantares, bons tirinhos de canabbis sativa, pó cristalino, ácido puro. O que entrava de um lado saía do outro. Assim mesmo, alugaram um bom apartamento e se cercaram de conforto. Eles pouco viajavam. Não dava tempo.

Já era hora de aumentar o montante da quinzena. A inflação aguça a avidez. E o negócio das drogas já estava meio devagar há algum tempo. Era muita vitrine. Havia outros mundos para explorar.

Sua network of friends dava margem a outros bons pulos de gato. A vaidade humana faz das colunas sociais um nicho de mercado inesgotável; a viadagem enrustida é outro campo fértil; política e corrupção é redundância, coisa que não dá leite, só tem gato escaldado; polícia, bicho, lenocínio, nem pensar... O melhor mesmo é deixar assim como está, só para ver como é que fica.

Para quem não pode nem quer perder mais tempo, o negócio é reciclar o que já se tem e aperfeiçoar o soçaite, desfazendo imagens criadas pelo jornalismo de butique, jogando nomes e títulos na lama. Com a bicharada, a coisa é mais simples: basta um Clube da Chave, desses de roçados gays, como há no subsolo de qualquer cidade do mundo. Então é só arregaçar as mangas e deixar de chorar as pitangas.

Nada mais frágil do que os chefões do crime organizado social e suas árvores genealógicas, suas raízes, suas famílias. São presas fáceis; não há caça melhor do que essas gazelas com rugido de leão que financiam o submundo.

São como eram os antigos assaltantes: capazes de tudo para não serem reconhecidos. Hoje, talvez as coisas não tomassem o mesmo rumo, já ninguém mais se importa quando não consegue esconder o status de ladrão.
 

Capítulo 49

QUITES


Nando Cacillares era de boa família. Seus pais e tios eram donos de um império comercial de largo espectro. Importadores e exportadores diversificaram suas atividades negociais. Cresceram indo e vindo ao Uruguai e a Argentina e já tinham expandido seus tentáculos para o Chile, Bolívia, Peru, Venezuela e Equador.

Nando era o queridinho da família. Atirava dinheiro pro ar. Talentoso e perdulário estudava pouco e gastava muito. Saía-se bem na escola, saía-se mal na gastança. Jogava bem futebol de salão, e muito bem sinuca, mas era vidrado em cartas e no prado. Turfe, corrida de cavalos.

Foi nas patas dos maiores favoritos que perdeu de barbada o que devia e o que não podia. Perdeu uma Vemaguete inteirinha, dois terrenos na praia de Maresia e uma kitinete na Miguel Lemos, sob os ares de Copacabana. Seus pais encobriam e cobriam suas loucuras. Até que, uma reunião do Conselho Executivo do conglomerado comercial, lhe cortou os naipes.

Endividar-se com a baixa esfera, no mundo do jogo, é virar equilibrista em fio de navalha. Todo perdedor tem crédito. Todo crédito tem prazo. Todo prazo tem que ser cumprido. Do contrário, naquele circo dos horrores, o devedor estica. É como era antes no jogo do bicho. Ninguém podia dar banho em ninguém. É a lei do cão.

Nando Cacillares devia os tubos para Parangolé - um conhecido banqueiro do bicho e agiota do submundo regional. Foi com ele que, num lance desesperado, Cacillares fizera um empréstimo guarda-chuva, para se livrar das dívidas com cinco ou seis credores que já não o deixavam mais dormir.

Cacillares contara com o ovo na galinha. Como sempre, passaria a conversa nos velhos, e pagaria tudo de uma vez só para um só cobrador. Aí, os conselheiros desabaram na sua cabeça. Teve que fazer o que não queria. Procurou Darlington.

Darlington, por sua vez, devia para Cacillares uma boa: aquela parada noturna quando ele bancou o motorista na fuga da proeza das marteladas nos dedos do cobrador de ônibus. Ladino, ele jamais descumpria obrigações, ou dívidas. Procurado pelo riquinho embrulhado, marcou encontro na Taberna de Pandora “para tratar melhor do assunto”. Afinal, ele lhe devia mesmo aquele favor.

Chopinho, sanduíche aberto, com a misteriosa mostarda da Taberna, justificavam aquele encontro de quitação de dívidas. Darlington encontraria, com certeza, a saída para Cacillares e assim ficariam quites. Dali pra frente, tudo seria na base do toma lá, dá cá entre eles. Nada melhor naquele tipo de interdependências eventuais.



Capítulo 50

PÔQUER COM CORINGA


A coisa poderia ser bem mais simples para Cacillares do que parecia. A fortaleza de Darlington estava no fato de ter o maior acervo de dossiês pessoais daquele mundinho. Parangolé - O Gordo era seu velho conhecido de investigações sigilosas.

Subira na vida, como agiota. Aplicara no jogo de bicho, com o quê só ganhou. Tinha um patrimônio notável. Imóveis urbanos e sítios em cada uma das zonas rurais, então chamadas de distritos municipais, também conhecidos como a zona colonial da cidade.

Parangolé era um usurário brutal. Não tinha dó nem piedade dos seus devedores. Seus próprios capangas morriam de medo das suas reações quando não traziam o dinheiro das cobranças, conforme ele determinara. Mas, Parangolé tinha uma fraqueza: o pôquer.

Uma fraqueza sem limites. Só se sentia forte e poderoso de verdade, quando tinha pela frente um jogo de apostas ilimitadas. Só gostava de uma coisa mais do que do pôquer: dinheiro.

Relativamente moço, tinha 45 anos, estragou a saúde com a permanente tensão que a vida atribulada lhe causava.

Seu coração andava por um fio. Numa época em que nem se pensava na maluquice de mãos humanas tocarem num coração de gente viva, Parangolé já escapara de dois infartos, por honra da firma. Ninguém sabia bem como, nem por que o Gordo ainda estava vivo. Seu bobo tinha mais da metade necrosada.

O impressionante é que, o único momento em que Parangolé não se deixava dominar pela angústia, pela ansiedade, pela iminência de um ataque cardíaco, era quando estava numa parda de pôquer com coringa. Era só assim que ele jogava. Pôquer demorado não era com ele.

E então, como de hábito acontecia na vida do Gordo, a monotonia foi quebrada pela expectativa de pegar mais um pato, desses de costas largas, num rendoso e promissor desafio de cartas.

A conversa num encontro marcado a pedido de Cacillares foi em torno disso. Um desafio de pôquer. Cacillares queria desbancar a fama de jogador profissional de Parangolé. Só isso e nada mais. Afora a grana que seria posta em pratos limpos na mesa.

O duelo cara a cara de pôquer com coringa, sem limite, proposto por Nando a Cacillares foi topado na hora por Parangolé.

Darlington, que empresariava o lance, aceitara suas condições por completo: o bicheiro entrava com dinheiro – a promissória única assinada por Cacillares, afinal naquele mundo valia o que estava escrito – e o seu desafiante com os imóveis que tinham registro em seu nome.

Síntese do lance: o Gordo botava em jogo a promissória de Cacillares e Cacillares botava em jogo o seu próprio patrimônio. Uma aposta absurda que nem Ionesco seria capaz de criar no seu teatro: Cacillares jogava para ganhar do Gordo o que era de Cacillares.

Ficou tudo acertado: o desafio seria no salão de jogos do palacete do banqueiro zoológico e teria como testemunhas e monitores, apenas seus seguranças, seu contador, Darlington e Sílvia. Mais que isso, de mirolho, só eles os dois: Cacillares e Parangolé.

Os comes e bebes eram copa-livre e vinham da cozinha da mansão do contraventor, com o serviço prestado por gente de sua inteira confiança.

Não havia limite de apostas. Nem regra alguma para decretar o fim do jogo. A desistência teria que ser de comum acordo. Se um não quisesse mais jogar, só poderia deixar a mesa se o outro concordasse. Sem limites de valores, sem limites de tempo.

Parangolé era ótimo jogador de pôquer. Cacillares também. Dois malucos. Inclusive por jogo. E por dinheiro.

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