sábado, 19 de maio de 2012

Capítulo 57

FARRAPO HUMANO


No momento em que entregava, na Taberna de Pandora, um pacote de Cr$ 80 mil para Darlington, Reginaldo abria na mesa do restaurante um exemplar do jornal Gazeta de São Sebastião que buscara na Estação Rodoviária, único lugar da cidade onde ele era distribuído.

Uma enorme manchete ocupava quase metade da primeira página: “Empresária Comete Suicídio”. Logo abaixo de uma enorme foto, tipo carteira de identidade, vinha a legenda: “Dona das Malhas ZS, enforcou-se na sala de sua residência”.

Darlington guardou a grana, pediu um chope e pouco depois foi tratar da vida, que ainda tinha muito que fazer naquele dia. Reginaldo guardou o jornal na pasta com os outros Cr$ 80 mil e sumiu.

Pouco tempo depois, como não cumpriu as obrigações da condicional, acabou encarcerado outra vez.

Foi preso num hotel de duas estrelas, em Onda do Mar. Debaixo da sua cama, encontraram uma pequena mala com pacotes de cocaína e duas outras, bem maiores, cheias de uísque contrabandeado.

Seu dinheiro acabou na prisão. Reginaldo não sabe até hoje como é que o diretor do presídio ficou sabendo que ele tinha tanto dinheiro na mão. Entregou tudo em troca de proteção lá dentro das grades.

O diretor lhe disse que devia Cr$ 20 mil para o delegado De Santos e outro tanto de igual valor para um casal de alcaguetes, a quem não podia deixar de atender.

Reginaldo cumpriu a pena até o último minuto. Perambula pelas mais escuras vias de Realeza do Sul até hoje. É um farrapo humano.



Capítulo 58

NEGÓCIOS DA CHINA


Nada é como parece. Para quem está de fora, tudo vale a pena; até “quando a alma não é pequena”. Só que negócio é negócio. É um troço assim cheio de riscos. De altos e baixos. Você acaba entrando numa roda-viva. Diminui as despesas para não ter prejuízo, ou aumenta a receita para ter mais lucro.

Darlington invariavelmente preferiu o lucro. Sempre aumentou as despesas. E, então, já era mais do que hora de ampliar o negócio. A grana de Dom Fernando Berttucci, àquelas alturas, já era pouca, ainda que garantida. Não bastava. Ele queria mais.

Em mais um anoitecer com Silvia, tudo ficou certo. O alvo agora seria a misteriosa e bem-sucedida dama Sue Wu Li, mulher do importador e exportador chinês Yung Wu Li radicado, com solidez incomum, há algum tempo em Realeza do Sul.

Sue Wu Li tinha tudo a perder para ser a próxima vítima: dinheiro, vitrine pessoal, a vaidade dos bem sucedidos, a fragilidade dos temores de pequenos e incomodativos deslizes casuais.

- Silvinha – sussurrou Darlington naquela tarde - Sue Wu é toda sua...
- Grande novidade, meu bem. Isso eu já sei que ela é. Ela me compra boas doses de pó. É uma usuária especial.
- Usuária, não. Sue Wu é fornecedora.
- Tu tá doido. Sue Wu é viciada. Boa pagadora. Não reclama de preço...
- Nem pode, o pó pra ela é de primeira. Mas, escuta: ela agora é fornecedora.
- Mas...
- Vê se me entende, pô. Agora ela vai ser fornecedora!

Sílvia não precisava de muito mais que um toque desses. Se Darlington lhe dizia que alguém era fornecedor, então era fornecedor e pronto. Naquela mesma tarde tomou as devidas e necessárias providências.

No dia seguinte, a mansão dos chineses foi invadida por dois policiais. Com o que parecia uma ordem de busca e apreensão, disseram que seguiam a denúncia de que havia um estoque de cocaína na garagem da casa.

Sem mais conversa, “acharam” no fundo de uma arca, cerca de três quilos da droga perto do Jaguar daquela locomotiva do soçaite caboclo, que falava o mais perfeito inglês da Ford Motor Company. O perfeito inglês era falado pelos dois - pelo carro e por ela.

Sue Wu Li foi algemada e já era levada, em desespero, pelos policiais, quando um táxi estacionou bem atrás da viatura de polícia.

Silvia, providencialmente e para todos os efeitos, chegava para uma de suas visitas habituais à amiga madame Wu. Na realidade, para nenhum efeito, a visita corriqueira era para entrega de pó.

Mostrando surpresa, ela se dirigiu aos polícias e quis saber do que se tratava. Chamou-os a um canto e, dali a poucos minutos, a chinesa foi liberada das algemas e da humilhação que elas provocam. Abraçou-se a Silvinha chorando, assustada e agradecida. Logo foi conduzida pela sua conselheira para dentro do casarão. Felizmente, nenhum vizinho presenciara a triste cena.

Silvia conversou uma vez mais e à parte, com os meganhas que se retiraram, deixando de lado a dondoca oriental. Passado o susto, Sue Wu Li tentava entender o que acontecera. Silvinha explicou-lhe que o mundo das drogas é assim mesmo. A polícia “planta” falsas evidências em vítimas escolhidas a dedo, por sua condição social, por suas contas bancárias, por sua evidência e importância na vida da comunidade...

- E o que vai me acontecer agora? – Choramingava humilhada a chinesa.
- Agora, minha amiga, deu-se o pior: você é refém dessa gente.
- Como assim “como refém”?
- Você vai pagar fiel e religiosamente a sua quota mensal de distribuidora da droga. Foi assim que fizeram comigo
- Mas, eu não quero distribuir isso. Acho que já nem quero mais usar...
- Não há mais querer, amiga. Eles pegaram no seu pé. Você agora é distribuidora. E com um detalhe, você só vai pagar... Sem receber um respingo sequer de pó. Eles ficam com tudo.
- Meu Deus! E se eu não pagar?
- Nem pense nisso. Seria o fim... O seu fim.

A ricaça inocente útil caiu em prantos nos braços da amiga e confidente. Silvia ainda a consolou por um bom tempo. Disse que ia ver o que poderia ser feito. Mas não lhe deu esperanças. Beijou-a no rosto fraternalmente. Acomodou-a na cama do amplo e requintado quarto do casal e partiu.

Na volta para casa sorria com a certeza daqueles que sabem muito bem que a vida é arte da dissimulação. De todas as culpas nenhuma é tão grande como a culpa daqueles que, quanto mais estão nos enganando, mais nos aparentam ser bons amigos. Sílvia, no entanto, não sabia nem queria saber o que era ter um pingo de remorso.

Por mais de meio ano, Silvia dividiu com os policiais a bolada de quase US$ 12 mil mensais pela droga que nunca era entregue a Sue Wu Li. Até que no final daquele outono, ficou sabendo pelo vespertino A Opinião Geral que perdera uma de suas melhores fontes de renda.

Em depressão profunda, Sue Wu Li cometera suicídio. Num sábado cinzento, morreu afogada, na praia de Maresia, charmosa autarquia de Onda do Mar, na boca voraz do Atlântico Sul. Silvia daquela vez pegara pesado. But, business is business. Aqui, ou na China.
 

Capítulo 59

CASO ARQUIVADO


Para o casal aventureiro nada parecia mais natural do que levar a vida que levava. Se business is business, para eles estava claro que o melhor negócio era sempre o dinheiro dos outros.

Se havia alguma coisa de que Darlington e Sílvia pudessem se arrepender, não era do mal que causavam, mas do bem que poderiam ter feito e não fizeram.

Se tivessem se apercebido disso, talvez evitassem as tragédias em série que, a seus devidos tempos e na medida em que eram consumadas, mais lhes pareciam meros e pequenos acidentes de percurso.

Decorrera um ano, um pouco menos, sem que tivessem dado a menor importância ao suicídio de Sue Wu li. Só foram se religar ao fato quando o corpo do marido dela Yung foi encontrado inerte, com um tiro no ouvido, ao volante de seu Jaguar.

O carro estava à margem esquerda da estrada; na contramão da rodovia que liga a promissora Realeza do Sul à ativa cidade portuária de Onda do Mar.

Por ironia do destino, estava bem ali no gargalo do garrafão que parece desenhar a geografia do Rio Grande do Sul, a caminho de Maresia, no Atlântico Sul, ataúde de sua honorável esposa.

Para a equipe de investigação do delegado Carlo De Santos, tratava-se de um caso típico de suicídio. O tiro foi na têmpora esquerda, a que dava para o lado de fora da janela do carro.

O chinês Yung Wu Li era destro. Tudo ficou por isso mesmo. A polícia não entra na contramão. Caso arquivado.

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