sábado, 19 de maio de 2012

Capítulo 60

VERDADE CHINESA


As ondas do Atlântico eram pequenas para a pororoca que se formou com a estranha morte do casal de chineses. Eles eram influentes e benquistos na cidade. Aquela pressão que Silvinha exerceu sobre madame Wu não tinha feito bem aos negócios. Soltou as velas dos que navegavam nas altas rodas.

Yung Li recusava abertamente a versão de suicídio defendida pela polícia. Sabia-se que ele decidira esclarecer todos os detalhes. Ele queria a verdade. Vinha se dedicando, desde então, a descobrir o manto de mistério que levou sua mulher à morte. Acabou cometendo suicídio.

Esta foi a conclusão dos peritos criminais do delegado De Santos.  Logo se transformou em apenas mais um caso de arquivo morto.

A cidade andava tensa e atenta. Era preciso baixar a bola, dar um tempo. As coisas vinham se sucedendo em cadeia. Estavam quase fora de controle.

E foi dentro desse panorama geral, absolutamente fora de hora, que o caso de Zélia acabou caindo no colo do diretor do presídio que o repassou para Carlo De Santos, o seu contato imediato de primeiro grau.

Os canais foram se estreitando. O delegado que sabia demais, começou a querer demais também.

A chantagem a Dom Fernando já era mesmo uma coisa de nada. Pouca grana, muito risco, muita trabalheira. Pouco a pouco, tudo estava se afunilando desagradavelmente. Perdendo o prumo.

Darlington sentia que era hora de reorganizar as coisas. Precisava dar um aperto geral. Refazer o rumo daquela viagem que ia de mal a pior. Não podia permitir que o caso Dom Fernando Bertucci também chegasse ao conhecimento da polícia. O próprio Judiciário já andava de olho naquela série de acontecimentos estranhos.

Na faculdade de Direito, os professores confundiam a vida real com a teoria penal. As provas acadêmicas começavam a girar perigosamente em torno da repercussão que cada caso provocava.

E o diabo é que muita gente boa do bando de Darlington sentava naqueles bancos universitários. A onda era enorme. O mar já não estava pra peixe.
 

Capítulo 61

REVELAÇÕES DO CRIADO MUDO


Dona Helena tocava a vida como lhe era permitido tocar. Os hábitos domésticos do marido eram rígidos. Tinha hora certa e aprazada para o café, para o almoço e para o jantar. Sabia que não poderia contar com os filhos, em razão de seus horários de colégio, cursos de idiomas, datilografia e outros compromissos que a juventude impõe às famílias.

Nos horários intermediários, enquanto dom Fernando ocupava-se na Livraria e com os seus afazeres em clubes de serviço e entidades assistenciais, ela tratava de organizar a casa, de cuidar de si, de ir aos salões de beleza, às compras, aos chás beneficentes, às reuniões sociais.

Elegantemente sóbria, era uma das figuras cativas na lista das 10 Mais Elegantes de Carlos Everton De Letteon. Mas, não dava grande importância para isso. Preferia se dedicar à criação e formação dos filhos, o que - para quem tinha três, naquela idade e naquela cidade - não era tarefa fácil de cumprir. Também não era nenhuma missão impossível.

Gostava das coisas da casa. Da decoração, da limpeza, da organização de tudo. Controlava, com distante nobreza, a eficácia das domésticas e arrumadeiras da mansão.

De quando em quando dava uma vista geral no serviço. Ela sabia bem como era essa coisa de volta e meia, jogarem a poeira para baixo dos tapetes. Mas, no geral, só tinha gente boa, trabalhadora e honesta dentro de casa.

Naquela tarde, depois de inspecionar a suíte do casal, reparou que a porta do quarto de Grazzi estava entreaberta. Entrou e deu uma olhada por alto. Já se considerava satisfeita pelo que tinha visto, quando notou que sua filha esquecera a chave da mesinha de cabeceira pelo lado de fora da gaveta.

Foi até lá, deu meia volta na fechadura e ficou com a chave na mão sem saber onde guardá-la. Optou por colocá-la dentro da própria gaveta que ficaria apenas encostada até que a filha voltasse e desse um jeito naquilo.

Ao abrir a gaveta bateu com os olhos num pequeno monte de cartas, todas sem envelope. Elas pareciam querer fugir de uma pequena pasta de galalite, cujo elástico protetor havia se rompido.

Parecia que alguém forçara aquele rompimento. Logo lhe veio à mente a figura de Marizete – a que tinha mais intimidade com as coisas e os lugares do casarão. Por via das dúvidas, resolveu saber o que aquele criado-mudo tinha para contar. Sentou-se na beira da cama da filha e tirou o bolo de cartas da gaveta. Começou a lê-las e empalideceu. Nenhuma delas tinha assinatura. A letra não parecia ser de Grazzi, mas o conteúdo tinha tudo a ver com Grazzi e suas circunstâncias colegiais.

Ali estavam as cartas que tinham levado à transferência da madre superiora e à demissão do professor Célio – um escândalo de relativas proporções nas esferas educacionais da cidade.

Havia outras, relacionadas com casos escabrosos envolvendo casais conhecidos, figurões da alta sociedade, pais de um grande número de colegas De Grazzi. Empalideceu. Recolocou as cartas na gaveta.

Ao tentar deixar tudo como estava, deparou com uma série de fotografias indecentes. Todas com gente conhecida; gente jovem e gente madura. Grazzi não aparecia em nenhuma delas. Pálida e incrédula, recolocou tudo nos devidos lugares. Aflita e derreada, deixou a chave no lado de fora da gaveta, bem como estava.

Quando Dom Fernando chegou para o jantar, ela lhe falou da dolorosa descoberta. O marido revelou-se mais sereno do que ela esperava. Mostrando ter entendido bem a extensão de tudo e que saberia lidar com Grazzi, ele tranquilizou a angustiada esposa:

- Helena, querida, deixe isso comigo. Não se incomode.
- Não posso fingir que não sei de nada, Fernando...
- Por favor, Helena, deixe comigo. Eu falo com Grazzi.
 
O tom com que o marido a atingiu não lhe deu chance alguma de retrucar. Pelo jeito ele saberia mesmo como mexer com essa nova e horrenda faceta da filha. Dom Fernando afagou carinhosamente o rosto da mulher, beijou-a e foi tomar um banho de sais e espuma. Pouco depois, jantavam sem tocar no assunto. Nunca mais dona Helena falou naquilo para ele. Nem Dom Fernando jamais lhe disse algo a respeito.

Se o marido tomou satisfações da filha, certamente não foi na residência do casal. Dona Helena jamais ouviu uma palavra de quem quer que fosse sobre um encontro entre Dom Fernando e Grazzi para tratarem daquilo especificamente.

Nunca mais alguém viu a chave daquela gaveta. Ela jamais foi chaveada. Nem precisava. Nunca mais foi usada.

Helena só reparou que, no dia seguinte à revelação feita ao marido, a filha chegara em casa lá pelas dez da noite cheia de hematomas. Alguns no rosto: olho esquerdo e face direita; e uma grande mancha roxa no braço direito. Quis saber o que tinha acontecido e Grazzi foi seca, rápida a fugidia:

- Nada, mãe. Foi o Vinícius. Metido a piloto, se perdeu na curva, subiu os canteiros da Praça Central e estuporou a estátua do Duque de Caxias.
- Deus do céu!
- Não foi nada, mãezinha. Ninguém se machucou de verdade.
- Querida, tome cuidado com esse pessoal...
- Mãe, fique tranquila. Deu pra ele. Acabou! – Disse e encerrou o papo.


Capítulo 62

TIPO PREMONIÇÃO


Há quase dois anos Darlington vinha recebendo – sempre em locais diferentes e por artimanhas mutantes – os dólares da felação de Grazziella. E olha que ele já passara o custo do sigilo para 2 mil dólares semanais, ao invés de quinzenais. O que antes valia quatro mil, agora batia nos oito mil dólares mensais. Já há bom tempo.

Nunca lhe passou pela cabeça o grau de depressão e angústia que infligia ao pai da desmiolada gatinha que agora já era maior de idade e dona do seu nariz. E boca. Nunca sentiu qualquer temor pelo que vinha causando a quem quer que fosse. Sentia-se absolutamente seguro em sua chantagem, pelo grau de projeção social que o patriarca dos Berttucci tinha que manter imaculado. A vida continuava uma grande festa.

O bando, sutilmente chamado de gangue, cada vez aumentava mais. Tinha de tudo um pouco: ricos, metidos a ricos, piolhos de rico, pobres orgulhosos, exibidos coloridos, enrustidos, viciados, aviões, vaposeiros, alcaguetes, iniciados, virgens de todos os sexos, entendidas e estendidos...

Uma confraria de escorpiões. Da natureza dos escorpiões. Todos crescidinhos. E cheios de veneno.

A jogatina, porém, estava caindo de moda. Perdera o charme. Tinha muito olho grosso em cima. A banda podre da polícia cobrava altos e desavergonhados cacifes. Entrava na roda e ganhava sem jogar. A cidade empobrecia. O exercício de compra e venda era um ato desumano.

Achar bolsas em festas de aniversário, abrir cofres de quartos de casal, pular janelas, extorquir, chantagear, armar arapucas para avis raras, esconder o ás na manga passaram à condição de obras de arte & manha com pesada concorrência.

A vida de golpista ficou dureza. Dava mais trabalho bancar Arsene Lupin que trabalhar. Os delegados embatumavam. Cresciam fora de tempo. Agora, não tinha mais volta, era só jogo duro!

Parece até que a dupla estava adivinhando passarinho verde, coisa que o pessoal do Sul acha que é pura imaginação, tipo assim premonição.

Naquele amanhecer de sábado Darlington contava como certo em seu bolso mais um envelope de dólares do seu editor-gráfico preferido. Surpresa desagradável: ao invés de dinheiro, se deparou com um bilhete frio e atrevido nas mãos: “Minha filha errou. Eu já paguei por ela mais do que devia. Faça o que bem entender com as fotografias. Basta cretino!”.
 

Capítulo 63

A CANOA VIROU


Entrou em parafuso. Ele estava cheio de papagaios que voavam tanto quanto os cheques com data incerta e não sabida que passara adiante. Seu crédito estava já pelas caronas. E nesse ramo, lobo não come lobo. Não se vacila, nem se deixa vacilar. Perde-se o crédito; perde-se a vida. Fica-se à margem da vida. Aí o homem é o lobo do homem. Vale tudo.

O velho Berttucci fez o que Darlington mais temia: jogou pro ar o medo do escândalo. O chantagista perdeu a sua melhor ferramenta de pressão. Sua única saída agora era o seu sócio naquela transa, o Paparazzo.

Já sabendo o que fazer, o finório foi ter com o parceiro e, na primeira esquina em que se encontraram, não deixou nada barato:

- Ei, olhaí sujou! Aquela múmia atirou tudo pro ar. Não quer mais pagar...
- E agora?
- Caga na mão e bota fora. Agora, tu é que vai arranjar essa grana, meu faixa.
- Eeeeu?
- Tu mesmo! Do contrário, eu te entrego. A canoa virou, carinha!
- Tu pirou de vez, meu trinca. Brochou, meu. Brochou. Ces’t fini!
- Ces’t fini, picas! Deixa de viadagem e te liga. Eu vou te dedar.
- O quê?
- Me abastece de grana, ou eu conto que foi tu o fotógrafo da sacanagem.
- Fiadaputa, tu não vai fazer isso.
- Não vou, uma porra! Te entrego, vais em cana e eu me safo, loque!
- Isso é trairagem. Caguetagem.
- Chongas! É delação premiada. Sábado já quero duas mil verdinhas na mão.
- Duas mil?!? Tua cabeça tá peidando, cara!
- É. Duas mil neste sábado e... Duas mil todos os sábados. Fui!

Deu as costas e se mandou. Darlington sabia que podia estar entrando mesmo numa canoa furada, mas não tinha volta. Desse ponto pra frente, a regra era uma só: cada um por si e ele pra cima de todos. Festa é festa, guerra é guerra!
 
O Paparazzo sabia que Darlington não tinha mãe viva. Se bobeasse, ele o entregaria para a cidade inteira como chantagista e mau caráter. Não teria estrutura para aguentar um repuxo daqueles.

Começou a se virar, a fazer pela vida. Juntou meia dúzia de confrades da sua maior confiança e se mandou à cata de fumo pra vender, carros para depenar, pó pra quem quisesse cheirar, apostas na sinuca, carteios combinados, vitórias de pangarés, derrubada de favoritos.

Inflacionou-se de pequenos delitos. A confraria agia como uma quadrilha. Uma gangue, uma banda podre, uma pandilla de sevandijas.

Paparazzo procurava encontrar uma saída definitiva. Conseguiu realizar três pagamentos seguidos. No quarto, deu os doces.

Não tinha mais de onde tirar. O sufoco era grande. Não teve como cumprir o acordo. Furou o pagamento. Deu cano em Darlington.

Pelo telefone a voz do seu sócio e algoz lhe pareceu calma e cordata. O medo do estouro iminente até passou. Aceitou a convite de um encontro com Darlington no início daquela noite mesmo.

Sozinho, nas cercanias da Praça Barão de Itararé, perto de coisa nenhuma, mas no centro  da cidade e escura como breu, levou do guru maldito um “telefone” à moda dos torturadores, uma tapona no pé de cada orelha, “só para aprender a não bancar o esperto”.

Embora tivessem a mesma estatura, Darlington era mais forte e seu poder aparecia nitidamente na cintura: uma Beretta de grosso calibre.

A arma parecia lhe dizer que a vida estava degringolando. O malandro não tinha limites quando se tratava de fazer valer o código da bandidagem.

O pior é que Paparazo nem suspeitava que jamais passaria pela cabeça de Darlington admitir a menor possibilidade de abrir o jogo sujo para a cidade.

Seria como dar um tiro no próprio pé. Como cuspir pra cima. O Paparazzo não podia nem sonhar com isso. E não sonhou.

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