sábado, 19 de maio de 2012

Capítulo 64

PACTO E TRAÍRAS


Paparazzo não conseguia cumprir o compromisso com Darlington. Ainda que sob ameaça, debaixo da pressão de ver a vida sendo revirada pelo avesso, ele acabou tomando a decisão que o seu algoz mais temia e menos desejava: jogou pó no ventilador.

Naquela noite, no meio da semana, já às vésperas de um novo pagamento, o bostinha – vejam só! – botou pra quebrar: se tivesse que cuspir na cruz cuspiria; se tivesse que comer o rei pra comer a mulher do rei, comeria.

Não há nada que o desespero e uma boa raiva não façam. Numa esquina do centro, chamou Darlington no apito.

- Darlignton, te antena: pouco se me dá se tu vais me dedurar.
- É mesmo, meu herói? Estão caindo os meus cotovelos de tanto medo.
- Vou com a minha banda dar o bote no ônibus da Onda pra Buenos Aires. O que render dali, passo pra ti. E acabou.
- E daí?
- É sem exemplo. Vai ser o último golpe.
- Sim, e daí?!? – desdenhava Darlington.
- Daí acabou. Tu vais me dar os negativos. De uma vez por todas. E a gente acaba com isso. Pra sempre. Forever.
- Fala como homem, bichinha! Daí o quê? Forever o quê, meu brother?!?
- Daí que é fim. Fim, fim mesmo, pau no cu! E nunca mais!

Darlington não tinha como fugir daquela estrada. Considerou o desatino do cara, levou em conta o desabafo a céu aberto na frente de quem passava, mediu a temperatura e concordou.

Nem foi pelo tom alterado e raivoso de Paparazzo, é que sempre havia outra coisa para fazer, outra porta para abrir.

No entanto, Darlington ainda precisava saber mais detalhes, antes de concordar com o ultimato do babacão irado.

Colocou calma e firmemente suas mãos nos ombros de Paparazzo, de um jeito que qualquer transeunte pensaria que se tratava do papo informal e descontraído de dois bons amigos.

Mostrava assim ao Paparazzo que o medo não era o seu fraco. Sorrindo com disfarçado ar de deboche, quis saber tudo direitinho:

- Quando vai ser então, bonitão?
- Neste sábado. O carro fica meia hora no Rancho Fundo, pro lanche e pros passageiros tirarem água do joelho...
- E esse bote vai dar quanto, cobrão?
- Sei lá. Bastante. O ônibus vem cheio de turistas de São Paulo, de Porto Alegre e ainda pega gente aqui em Realeza.
- Carro cheio não me diz nada.
- É gente de grana... – falou e com movimentos cuidadosamente calculados, desvencilhou seus ombros das mãos de Darlington que não perdeu a frieza:
- Olhaqui, se é pra acabar, tem que render pelo menos dez mil dólares. Ok?!?
- OK! Deve dar mais que isso. Mas fica tudo em dez e nem mais um puto!
- Dez tá bem bom. Mas o acerto é na bucha e na hora. Onde vai ser?
- O assalto vai ser pelas nove da noite. Às seis da manhã de domingo a gente se encontra na ponte de Onda do Mar.
- Ei, por que nessa ponte e nessa hora? Por que não no nosso chão?
- Porque dali, a nossa banda vai até Remanso dos Palmares.
- Banda, um caralho! Só eu e tu. Mais ninguém, Cara.
- É nóis ou nobody, meu herói

Paparazzo disse isso no dialeto da zona. E enfrentou o olhar endurecido do outro. Darlington deu sinal de que desejava ouvir mais, fazendo um muxoxo:

- Hâmmm...
- Tá com medo de quê, mandão? Dali a nossa banda vai buscar uns trecos legítimos lá do Paraguai pra livrar o prejuízo que tu nos dá.
- Agora a banda é tua, é?!? Tá bem, tá bom. Tu leva a grana contigo.
- E tu, leva os negativos e as cópias. Senão, nada feito, fim de papo.
- Negócio fechado. Mas tô cagando e andando pras tuas brabezas.
- Falou, meu herói! – Aí, quem debochou foi Paparazzo.

Antes de sair dali, Darlington levou a mão direita ao rosto de Paparazzo, deu-lhe um tabefezinho que parecia ser um carinhoso gesto de despedida. Na verdade, era um aviso de que estava pouco ligando para as ameaças do outro.

Um não apertou a mão do outro. Nada estava escrito. Mas ficava o dito pelo dito. Na dura lei da cretinalha, nada valia mais que a palavra de um cretino. Mesmo quando se tratava de um pacto e dois traíras.


Capítulo 65

DE CAMAROTE


Já era sábado e lá estavam Darlington e Sílvia na lanchonete Rancho Fundo, assim como se fossem apenas mais um casal de namoradinhos aproveitando o point da cidade jovem. Distraíam-se, ele com um sanduíche-aberto; ela com uma pizza à moda. Sílvia mal escondia a ansiedade. Mas, ambos fingiam que estavam bem pra lá do fim do mundo.

Se tudo fosse como sempre, dali a dez minutos ia começar a operação bandida. O ônibus sempre chegava as nove e permanecia meia hora ali na Rua das Flores, bem defronte à porta de entrada da lanchonete. De sua banqueta no balcão, Sílvia viu os guris medonhos estacionarem um Karman Ghia vermelho e um Austin verdoengo bem no lugar do ônibus.

Ela já sentia a adrenalina sacudindo sua expectativa de assistir de camarote a invasão do carro de turismo pela patota. Tirou o corpo fora de seus pensamentos e virou-se para o parceiro:

- Tomara que dê tudo certo para esses abobados.
- Shhh fala baixo. Eles tão por aí. Nem sei quantos eles são por enquanto.

Olhando para a rua, eles reconheceram Carlito Kazzallette que acabara de passar pela calçada da frente, fingindo desinteresse no movimento dos clientes da casa. Carlito não era bobo. Nessas horas, não fazia nada sem planejar direito cada passo, cada segundo, cada movimento.

Noutras horas, era babaca e deslumbrado como fazia bem àquela geração de nobres mandriões falidos. Logo passou por ali o charmoso Tutti. Com jeito de quem ia seguir em frente, sem dar bola para a plebe da casa de lanches.

Darlington parecia preocupado só com o seu sanduíche. Repetia pequenos goles de Coca-Cola e mordiscava um tablete da especialidade da lanchonete. Do alto de sua frieza, chamou sussurrando a atenção da noiva:

- Fica na tua. Come tua pizza, ela tá esfriando.

Sílvia fez o que o namorado sugeriu. Mas, seus olhos voltaram para a porta de entrada. Acompanhou o movimento. E viu mais um: era Geraldo Rosenberg. E, assim, entendeu como eles conseguiriam entrar no ônibus.

Gegê era sobrinho e afilhado do agente da empresa de ônibus que fazia a linha Brasil/Argentina. Tinha a chave de todos os carros da empresa que, volta e meia, pernoitavam na garagem do seu tio. Ele mesmo deveria abrir a porta.

Aos poucos Sílvia foi se acalmando: agora ela estava se convencendo de que a operação da meninada tinha tudo para dar certo. Ou não.
 

Capítulo 66

BICHO CARPINTEIRO


Darlington era bom cabrito, não berrava. Só observava, ruminando o início da ação. Pelas suas contas, era a primeira vez que ficava de fora de um programa previamente elaborado pela gangue que ele mesmo tinha formado. Deixou pra lá as lamúrias internas e cutucou de leve a namorada:

- Faltam cinco minutos. Daqui a pouco chega o ônibus. Agora tu parece mais calma. Desliga e toma o teu guaraná.
- Sei lá, - disse ela, se desculpando - acho que é porque estamos fora dessa corrida... Não estamos pilotando.
- Vamos ver o que vai dar. Já, já, a gente se manda e deixa tudo com eles. Amanhã de manhãzinha, pego o que é nosso e fim pros paus.

Naquele preciso momento, o bonitão Wellington Rice e o esperto Nando Cacillares conversavam, batiam um desses papos de fortuitos encontros entre dois amigos numa esquina qualquer da vida.

Na realidade, estavam iniciando a campana, lá do outro lado da rua. Tinham entrado na zoeira também. O bando estava completo. Na escalação daquele time todos eles jogavam.

Sílvia fazia de tudo para se conter: “Vou ter que comer essa pizza que já está com cara de fria” - pensava. Até aquele instante, ela contara apenas quatro ou cinco garotos.

Achava, angustiada, que a turma era pequena ainda para depenar um carro inteiro do tamanho daquele. E então teve tudo para ficar feliz: lá estavam também Paolo Bianchi, Betinho Temprano e o mais bandidinho deles, conhecido por ela também como Paparazzo.

Com aquela turma, dava para deitar e rolar. Mais pela quantidade do que pela qualidade. Quando voltou a mordiscar seu lanche é que sentiu na própria carne que uma pizza portuguesa fria com guaraná não se dá nem pra cachorro. Por mais quente que esteja. A pizza, não o cachorro.

Foi, então, que Darlington a tirou das elucubrações; tocou de leve seu antebraço e lhe segredou:

- Tô sentindo uma coceira no corpo.
- É bicho carpinteiro. Tu não podes ficar quieto, mimoso.

Quase sem tempo para respirar entre um segundo e outro, ele apontou para a rua com um leve meneio de cabeça:

- Olha ali. Chegou o ônibus. Vem cheio. Não tem janela vazia. Melhor que não ficasse ninguém dentro do carro. Estão descendo.
- Pobres bichos, amanhã nós vamos estar com o que é deles no bolso – comemorou Sílvia ronronando.
- Boa viagem, seus trouxas – disse baixinho, seu noivo.

Antes de pagar a conta, o jovem escroque resumiu para ele mesmo a ópera toda: “São nove horas e três minutos e contei cinquenta e um passageiros, um motorista e um guia. A dança não demora a começar”.

Mal concluíra o pensamento e lá já estava Gegê abrindo com naturalidade a porta do ônibus. Abriu. A última imagem que Darlington e Sílvia registraram dali de onde eles estavam foi a cena do bando colocando máscaras. Ele ainda criticou a ação da cambada:

- É muita fita. Quanta frescura. Não aguento essa babaquice.
- Vamos logo, darling. Daqui a pouco, se tudo der certo, vais ter que te encontrar com esses fiteiros – lembrou ela ao seu querido.

O querido pegou Sílvia pelo braço, envolveu-a amorosamente como se a protegesse da fria brisa noturna e saiu pela porta lateral, a bons e confortáveis metros de distância do ônibus vazio que já abortara os turistas para a lanchonete.

A poucas quadras dali, já no aconchego do seu apartamento, Darlington e Sílvia compartilhavam o calor úmido daquela ducha que lavava suas almas e os preparava para mais uma noite no paraíso.

Libertos da fumaça do chuveiro, eles fizeram de tudo um pouco e muito mais sob o fino lençol Santista daquela noite. Parecia até que o mundo ia acabar.


Capítulo 67

BOM DOMINGO


O motorista do carro-de-praça não conseguia dirigir como devia. A neblina cerrada impedia sua visão. Ainda bem que ele conhecia aquele trecho de cor e salteado. Darlington era seu cliente habitual.

Bom cliente, por sinal. Sempre deixava gordas gorjetas. Aquele domingo seria de matar. “Cerração baixa, sol que racha”. O prenúncio era de um dia quente e úmido. O motorista estava encerrando mais uma jornada de trabalho.

A pouco menos de cinco metros da cabeceira da ponte, Darlington pediu que ele parasse por ali mesmo. O motorista ainda quis saber se ele gostaria que o esperasse por algum tempo. O passageiro, mais sério que de costume disse que não, com a sua natural simpatia:

- Não, meu chapinha. Não precisa.
- Tu vai ficar aqui?...
- É vou pegar carona com uns camaradinhas que vão tomar um sol na praia.
- Então, tchau. A gente se vê por aí...
- Tchau. Bom domingo.

Como sempre, Darlington foi mão-aberta com o trabalhador. Deixou-lhe um troco que dobrava o preço da corrida. Melhor e maior do que se tivesse que esperar pelo passageiro.

O motorista fez a volta no meio da pista e, quando olhou pelo retrovisor, já não viu mais a figura do freguês. A neblina era mesmo muito densa e baixa. Olhou no seu relógio de pulso: 5h48.

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